INSTITUTO SUPERIOR TÉCNICO DE ANGOLA
POLO - CAXITO
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PSICOLOGIA EDUCACIONAL
A PERSONALIDADE DO PROFESSOR
Caxito, 2019
A PERSONALIDADE DO PROFESSOR
Trabalho do Curso de Psicologia apresentado ao ISTA, como parte de requisito para a avaliação na cadeira de Psicologia Educacional.
Grupo nº 4
3º Ano
Período: Tarde
Curso: Psicologia
O DOCENTE
_____________________________
Caxito, 2019
AUTORES
1. Catarina Matoso Pedro de Andrade
2. Darucha Francisco da Fonseca
3. Maria Sebastião de Gouveia Leite
4. Santa Sebastião Moralis Matos
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 5
ENQUADRAMENTO DO TEMA 6
1.1- A Personalidade do Professor 6
1.2- Sobre a categoria Personalidade 7
1.3- A personalidade humana em sua Essencialidade Concreta 10
1.4- Denominamos esse sistema de Personalidade 11
1.5- A personalidade do Professor em Questão 12
CONSIDERAÇÕES FINAIS 14
REFERÊNCIAS 15
INTRODUÇÃO
O trabalho que aqui apresentado foi elaborado a partir do tema a Personalidade do Professor. As demandas pela formação do indivíduo apto a adequar-se-á esses novos tempos, obviamente, recaíram sobre a educação escolar. No esteio da reestruturação do capital em curso, as ideias da ‘teoria do capital humano’ tornaram-se palavras de ordem.
A formação da mão de obra tecnicamente adequada ao perfil dos novos postos de trabalho subjugava, a passos largos, a educação escolar, tanto na prescrição de seus conteúdos, cada vez mais pragmáticos, quanto na prescrição dos seus métodos e técnicas de ensino, cada vez mais enfatizados.
ENQUADRAMENTO DO TEMA
1.1- A Personalidade do Professor
A temática referente à personalidade do professor tem sido recorrentemente apelada no campo das pesquisas em educação. A ênfase conferida a esse fenômeno é um dado relativamente recente e desponta alinhada à discussão mais ampla, qual seja, a própria formação docente. Importante indicar, ainda que introdutoriamente, algumas características que marcaram o contexto educacional no qual despontou a emergência dos estudos sobre a temática em pauta. Segundo Saviani (2007), ao final da década de 1960 e década de 1970, novos parâmetros de organização e gerenciamento do sistema produtivo se contrapuseram ao modelo taylorista-fordista e, como consequência, a ordem social passou a subjugar-se de modo praticamente absoluto aos preceitos da acumulação flexível.
Ainda segundo esse autor, nas décadas subsequentes e até o final do século XX, especificamente no campo educacional, verificou-se a ascensão da concepção pedagógica produtivista, no bojo da qual despontaram, simultaneamente, o acirramento das concepções tecnicistas e os debates crítico-filosóficos acerca dos limites e possibilidades da educação escolar na sociedade do capital, à luz dos quais se desenvolveu a visão “crítico reprodutivista”. Mas, foi também a esse tempo que se anunciaram ideários contra hegemônicos, a exemplo das orientações pedagógicas para uma “educação popular”, da pedagogia crítico-social dos conteúdos e da pedagogia histórico-crítica.
Ao final do século XX houve um recrudescimento de ideários pedagógicos cada vez mais alinhados às demandas das contínuas reestruturações do capital, sintetizados pelo que Saviani (2007) denomina “neoprodutivismo” e suas vertentes, quais sejam, o “neoescolanovismo”, expresso nas pedagogias do “aprender a aprender”, o “neoconstrutivismo”, expresso na individualização da aprendizagem e na “pedagogia das competências” e o “neotecnicismo”, expresso em princípios de administração e gestão da escola cada vez mais voltados às normativas empresariais, a exemplo dos programas de “qualidade total”, cumprimento de metas quantitativistas, sistemáticas de avaliação do produto em detrimento do processo etc.
Essa conjuntura, gestada nas últimas décadas do século passado adentrou o século em curso, subsidiando um cenário no qual emergiram inúmeros questionamentos em relação à educação escolar. Dentre eles, proclamou-se à viva voz a necessidade de se recriar a escola e, igualmente, a formação de professores. Acirraram-se as críticas que conclamaram o fim de um modelo de escola, considerado arcaico e racionalista, a ser superado por um outro, apto à preparação de indivíduos para o novo século e no qual, mais importante que aprender, seria “aprender a aprender”.
Outro fato digno de nota desponta, também, no esteio desse contexto: a escola estaria em ‘crise’ e os professores, cada vez mais ‘adoecidos’. À medida da denegação das análises que colocam no cerne desse problema o próprio esvaziamento da educação escolar promovido pelos avassaladores avanços do neoescolanovismo e do neoconstrutivismo, a busca por estratégias alternativas de formação, tanto dos professores quanto dos alunos, se converteu em palavras de ordem.
Nessa busca, são anunciados novos pressupostos para a formação de professores, pressupostos esses, representativos do ideal neoconstrutivista de individualização do ensino. Visando a promoção do pensamento autônomo e de competências, tais como criactividade, flexibilidade, enfrentamento de mudanças etc.; bem como incentivando inúmeras estratégias de auto formação, a ênfase recai cada vez mais sobre as características pessoais, vivências profissionais, construção de identidade pessoal e profissional etc. Entrecruza-se de modo quase absoluto o eu pessoal e o eu profissional.
Ter o ensino escolar como objeto de estudo passa a estar cada vez mais atrelado ao reconhecimento do papel da subjetividade do professor no exercício de seu trabalho. No Brasil, a obra do educador Antônio Nóvoa tornou-se referência basilar na disseminação de ideias que afirmam a intercondissionabilidade entre a personalidade do professor; seu ser e maneira de ser; e a atividade docente, inaugurando o que tenho denominado de “escola nóvoa” no campo das pesquisas em educação.
Não desconsideramos a importância da personalidade do professor para o exercício de seu trabalho e, exatamente por essa razão, defendemos a necessidade de se saber, afinal, o que é personalidade e como ela se desenvolve. Da mesma forma, quais são as reais possibilidades para que a ênfase a ela conferida se expresse, de fato, como acréscimo de valor para a educação escolar. Entendemos que esse esclarecimento é indispensável para qualquer análise que se faça acerca de suas expressões, tanto no que se refere à formação quanto ao exercício da profissão docente. Sobre essas questões versaremos na sequência.
1.2- Sobre a categoria Personalidade
O destaque à categoria personalidade marca a própria história da psicologia, ciência que trouxe para si os imensos desafios impostos à compreensão da subjectividade humana, expressa na maneira de ser dos indivíduos. Essa história nos revela que a maioria das teorias da personalidade tem suas origens e desenvolvimento nos processos psicoterápicos, dado que nos permite afirmar a existência de uma relação diretamente proporcional entre o enfrentamento de dificuldades ou sofrimento psíquico vividos pelas pessoas e o relevo teórico conferido a essa categoria.
O psicólogo norte americano Arthur Burton (1978) já dizia que a ansiedade é a mãe das teorias da personalidade, posto que em ‘situações normais’ pouco se apela à maneira de ser dos indivíduos. Porém, quando fissuras se instalam nelas, facilmente se convertem em objeto de destaque na psicologia. Não por acaso, entre as teorias da personalidade e as teorias da psicopatologia existe em elevado grau de concordância. Assim, não é dado novo na história da psicologia, nem nos causa estranheza por conhecermos a referida história, que diante dos inúmeros desafios impostos ao trabalho do professor, apele-se às expressões de sua personalidade.
Todavia, não obstante a relevância desta categoria nos campos psi (psicologia, psiquiatria, psicopatologia, psicanálise etc.), poucos conceitos se mantêm tão obscuros e polissêmicos quanto o conceito personalidade. Tal facto, porém, não resulta de nenhum mistério oculto na subjetividade dos seres humanos, mas da impropriedade e artificialidade presentes nos caminhos lógico-formais e idealistas trilhados na busca da explicação dos fenômenos psicológicos.
Vygotsky (1997), em seu clássico artigo intitulado O significado histórico da crise da Psicologia, datado de 1927 e, paradoxalmente, extremamente atual, analisou os limites da psicologia tradicional que, em seu pluralismo teórico-metodológico, poucas chances teria para se firmar como ciência, na correta acepção do termo. Para ele, na configuração multifacetada da psicologia, qualquer fato psicológico expresso em cada um de seus sistemas teóricos independentes assumirá formas totalmente distintas, convertendo-se em diferentes fatos. Daí que:
À medida que a ciência avance, à medida que se acumulem os fatos, obteremos sucessivamente generalizações distintas, classificações distintas ciências distintas, que se tornarão tanto mais distantes do fato comum que as unia e tanto mais distantes uma das outras, quanto maior seja o êxito com que se desenvolvam.
Diante do exposto, resta-nos constatar que qualquer apelo que se faça a fatos psicológicos, no caso à categoria personalidade; como o que vemos ocorrer no âmbito da formação de professores; requer esclarecimentos acerca do que ela seja. A utilização desse termo despida de fundamentos teórico-metodológicos não passa de mera abstração, torna-se inócua, podendo contribuir para mais um tipo de psicologização do espaço escolar.
A apresentação das inúmeras teorias da personalidade ultrapassa os objetivos e possibilidades desse texto, entretanto, elas podem ser classificadas em três grandes grupos, tomando-se como critério os sentidos filosóficos conferidos à relação entre personalidade e pessoa. Segundo Abbagnano (1998) existem três fases nos estudos e utilização desses conceitos. Primeiramente, esse termo foi introduzido na linguagem filosófica pelo estoicismo popular para designar papeis representados pelo homem. O conceito de papel aponta o conjunto de relações comportamentais que situam o homem em dada situação e o definem com respeito a ela. Nessa direção, a relação homem-situação é o dado que o afirma e caracteriza. Desdobram-se de tal posição filosófica tanto a teoria behaviorista2 quanto cognitivista.
Na segunda fase, o termo pessoa aparece como auto-relação, ou seja, em sentido de relação do homem para consigo mesmo, com o eu como consciência de si. Esse termo designa o homem como ser capaz de representar-se conscientemente e que desenvolve uma unidade interna apta a resistir e atravessar todas as transformações pelas quais passa. O homem é então uma pessoa pelo desenvolvimento da identidade consciente do eu (self), pela qual adquire o conhecimento distintivo de si mesmo e do universo, superando a inconsciência sobre os mesmos. Pessoa, portanto identifica-se com consciência, vista como simples referência ao homem em sua individualidade.
Essa posição ancora as teorias da personalidade psicodinâmicas (psicanálise, psicologia junguiana, lacaniana etc.), bem como fenomenológico-humanistas (teoria centrada na pessoa, teoria da auto-atualização, teoria interpessoal etc.), que tomam como objeto a vida subjetiva, ou, intrapsíquica, pressupondo-a como estrutura ou propriedades internas inerentes aos seres humanos.
Contra essa interpretação de pessoa surgem posições filosóficas caracterizadoras da terceira fase, que se recusam a reduzir o ser do homem à consciente/inconsciente ou a autoconsciência. Destacam-se entre essas posições aquelas veiculadas pela antropologia de esquerda hegeliana e pelo marxismo, que, embora não tenham como objetivo central o estudo desse conceito, iniciam sua renovação evidenciando a interdependência entre o ser dos homens e as relações sociais de produção, isto é, de trabalho. Nesta perspectiva o conceito de pessoa não se identifica com eu (self) ou consciência, representando, outrossim, a ação humana sobre o mundo. O homem é pessoa como unidade individual exatamente porque é heterorrelação intencional, ou seja, essencialmente construído por suas relações com os outros homens e com o mundo.
Em pesquisa realizada por Martins (2007) acerca do destaque conferido à personalidade do professor pelos ideários pedagógicos em voga, a autora buscou identificar o aporte teórico que lhes dá sustentação e, da mesma forma, os significados atribuídos a esse conceito. Os resultados desta investigação evidenciam que os referidos ideários pedagógicos não apresentam de modo explícito sua concepção de personalidade. O tratamento dispensado a esse conceito permite-nos, meramente, deduzir que personalidade aparece como sinônimo da maneira de ser da pessoa, e essa, possuidora de uma essência com qualidades universais e inalienáveis, independentemente das condições objetivas em que se desenvolvem.
Evidencia-se, portanto, que o conceito de pessoa desponta em acentuada conformidade com a segunda fase anteriormente descrita, que afirma uma concepção idealista, identificando pessoa e autoconsciência. É essa concepção que tem contaminado historicamente as teorias da personalidade, dotando-as de significados essencialmente subjetivistas e abstratos.
A pessoa e a personalidade do professor aparecem como unidade e propriedade de um ser particular, cuja sociabilidade não ultrapassa os estreitos limites do entorno social imediato. Essa proposição é característica de um humanismo artificial, que suplanta a realidade concreta, ou, a concebe também artificialmente. Esse modelo dicotomiza lógico formalmente indivíduo e sociedade. Embora as relações entre mundo interno e mundo externo sejam admitidas, a conectividade estabelecida entre eles é linear e restrita, alheia às múltiplas relações que sustentam a vida dos homens.
E mais, conforme disposto por Jacoby (1976), fazer apologia da subjetividade é uma das características centrais do humanismo abstrato. O culto professado a ela aparece e torna-se fundamental à medida de seu aviltamento, portanto, apelá-la fortemente, muito mais que expressar sua importância, poder ser, apenas, uma reação paliativa às ameaças de seu desaparecimento.
A promessa que uma centralização na subjetividade humana oferece fica desperdiçada, a menos que se considere o lugar que lhe cabe na sociedade em geral. Isto porque o culto da subjetividade humana não é a negação da sociedade burguesa e sim a substância desta. A veneração da subjetividade e das relações humanas representa um progresso no culto fetichista. A rejeição da teoria que busca compreender a objetividade em benefício de sentimentos subjectivos reconstitui, ao contrário, uma suspeita tradição cartesiana: sinto, logo existo. O impulso íntimo da sociedade burguesa é jogar o sujeito de volta sobre si mesmo. Receitar mais subjetividade para auxiliar o sujeito avariado, corresponde a receitar mais doença como cura.
O tratamento que vem sendo dispensado à personalidade do professor não foge a essa tradição, cabendo ao indivíduo ‘conhecer-se’ e ‘transformar-se’ tendo em vista a conquista da autonomia e da liberdade. A natureza histórico social da vida pessoal, as mediações políticas e econômicas que sustentam sua construção, parecem ser questões fora de discussão. Não estamos dizendo com isso que tais ideários não reconhecem as relações personalidade-sociedade, mas, que as concebem de maneira meramente empírica, no plano do observável e das interações face a face, tal como o faz a psicologia tradicional burguesa. A personalidade, assim concebida, aparece como epifenômeno da existência social dos homens e a sociedade como o meio ao qual ela deve adaptar-se por força das circunstâncias.
Essas premissas escamoteiam a verdadeira essência humana, que é realizar-se nas relações sociais, quando então as inúmeras possibilidades humanas se realizam ou fracassam no processo histórico social de sua autoconstrução. Marx (1987), ao afirmar na “VI Tese sobre Feuerbch” que a essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular, mas o conjunto das relações sociais, apresenta uma verdade denegada pela psicologia tradicional burguesa e pelas teorias pedagógicas alinhadas a ela. Tais teorias, por não desvelarem objetivamente o ser dos homens, versam sobre os fenômenos psicológicos, a exemplo da personalidade, como dados existentes por si mesmos, ou, expressões do indivíduo apreendido isoladamente.
Afirmamos, portanto, a necessidade de um reconhecimento indispensável ao tratamento da questão em tela: a personalidade dos homens é determinada pelas relações que estabelecem com o mundo, físico e social, por meio da atividade. Assim, as características desse mundo circunscrevem as condições de seu desenvolvimento.
1.3- A personalidade humana em sua Essencialidade Concreta
Diante do exposto, asseveramos que a compreensão da personalidade exige a compreensão da natureza essencial do homem. Determina a compreensão do movimento de seu desenvolvimento, que tem em sua base a atividade objetivada, isto é, o trabalho social. Ao produzir os seus meios de existência o homem se produz a si mesmo, dado determinante da seguinte constatação: nenhum homem, por mais vasta que seja sua atividade, pode produzir individualmente tais meios e, consequentemente, a si próprio.
Nessa direção, o tratamento dispensado à personalidade humana em sua essencialidade concreta determina a análise da dimensão ontológica do trabalho social. Segundo Marx (1978) é pelo trabalho, atividade vital humana, que o homem se firma como sujeito de sua existência, construindo um mundo humano e humanizando-se nessa construção. Visando o controle da natureza como condição para a satisfação de suas necessidades, na unidade complexa que se institui entre cérebro, mãos e linguagem, do antropóide ao homem, desenvolveram-se dispositivos culturais, isto é, não mais naturais, para o referido controle.
A actividade humana determina nas diversas e históricas maneiras de sua manifestação a formação de capacidades, motivos, finalidades, sentido, sentimentos etc.; engendrando um conjunto de processos pelos quais o indivíduo adquire existência psicológica. À luz desses postulados marxianos, Vygotski (1995) afirmou que às características biológicas asseguradas pela evolução da espécie, às funções psíquicas elementares, seriam acrescidas outras funções, produzidas na história de cada indivíduo, chamando-as de funções psíquicas superiores.
1.4- Denominamos esse sistema de Personalidade
Portanto, a personalidade compreende o ‘estilo pessoal de ser’, expressa a dinâmica de procedimentos e modos de atuar da pessoa, referida pelo universo de significações e sentidos experienciado. Em sua construção operam aspectos que dependem de propriedades naturais e comuns a todos os homens, a exemplo das funções psíquicas elementares e do temperamento; aspectos que dependem das formações culturais, dos povos, classes e grupos, bem como aspectos da história individual, das vivências particulares da pessoa.
Inconteste, pois, que a personalidade resulta da atividade do indivíduo condicionada por condições objetivas, isto é, pela história de objetivações efetivadas. Essa afirmação não subtrai da personalidade sua dimensão subjetiva mas afirmar sua objetividade, uma vez que a personalidade de cada indivíduo não é produzida por ele solitariamente, outrossim, como resultado da atividade social e, em certo sentido, não depende de seu desejo, mas, da trama de relações que se estabelecem entre eles.
Segundo o referido autor, o homem, como indivíduo, nasce dotado de necessidades vitais, elementares, que são inicialmente satisfeitas pelas ações de outras pessoas. À medida de seu desenvolvimento, com a ampliação dos domínios sobre a realidade, vão se estabelecendo vínculos cada vez mais dinâmicos entre as necessidades, estados carenciais, e os objetos capazes de atendê-las. Esses vínculos evidenciam que o estado de necessidade do sujeito não está ‘registrado’ no objeto; que precisa, então, ser ‘descoberto’.
Tais proposições visaram o enfoque da categoria personalidade em sua essencialidade concreta, o que, em síntese, representa afirmá-la como produto da atividade especificamente humana, sabendo que essa especificidade reside na aquisição de propriedades que capacitam o homem para intencionar, projetar e implementar operacionalmente seu projeto. Ocorre, porém, que vivemos numa sociedade de classes, injusta e desigual, que impõe, à maioria dos indivíduos, a organização de suas vidas em função das possibilidades concretas determinadas por esse modelo de organização social.
Assim, para que possamos de fato conceber a personalidade do professor como uma das referências no trabalho pedagógico, considerando-a acréscimo de valor para o mesmo, não podemos perder de vista as condições histórico-sociais que circunscrevem a sua formação. Entendemos premente e por anterioridade, que se ‘devolva’ aos indivíduos as condições objetivas requeridas ao pleno desenvolvimento de suas próprias personalidades.
E, entender a essência humana como relações sociais internalizadas, determina o reconhecimento de que tais relações são produzidas pelos homens por meio das atividades que realizam e que têm em suas bases as relações sociais de produção. Essas relações, na sociedade de classes, não produzem ‘apenas coisas’, mas, muitas vezes, ao próprio homem como tal. É fato existir no indivíduo uma singularidade irredutível às coordenadas sociais, mas a essência dessa singularidade é exatamente a sua constituição como ser social. Diante do exposto, nos perguntamos: é possível conferir centralidade à personalidade do professor no processo educativo, sem levar em conta as relações de alienação e suas consequências na subjetividade humana?
1.5- A personalidade do Professor em Questão
Conforme apresentado, a personalidade é uma formação psicológica que se institui como resultado das transformações das atividades que pautam a relação do indivíduo com o meio físico e social. Tal facto exige a superação de concepções centradas na proposição de uma estrutura natural interna na personalidade, que se desenvolverá nos limites da história particular do indivíduo e na dependência de seus esforços pessoais. Afirmamos, portanto, que as múltiplas possibilidades do processo de personalização se realizam na constante auto realização da pessoa, ante a realidade social na qual se insere. Trata-se, pois, do destaque necessário à articulação entre a pessoa e a qualidade de suas condições de existência; uma vez que essas condições, se por lado guardam as possibilidades para sua realização, por outro, em condições de alienação, determinam seu obliteramento. Ao romper a articulação necessária entre o trabalho e seu resultado, a alienação cria profundas contradições na existência humana.
As pessoas deixam de ser sujeitos do desenvolvimento de suas capacidades individuais, de suas histórias, do seu próprio crescimento, convertendo-se em executores de tarefas que não são definidas por elas. Com isso, sentimentos como a resignação, a passividade e indiferença, o conformismo e a desesperança são gerados e expressos em diferentes formas de sofrimento psicológico ou outros adoecimentos, representativos da despersonalização advinda da falta de sentido da vida ou de sua mistificação. Conforme sinalizado na introdução desse texto, nas duas últimas décadas, encontramos referências frequentes à personalidade do professor, fundamentalmente relacionadas às novas demandas de sua formação e exercício profissional.
Dentre elas se incluem as considerações negativas sobre o ato de ensinar e sobre a pedagogia científica que legitima a racionalização do ensino, sobre a valorização, considerada excessiva, dos conteúdos científicos que embasam os conteúdos escolares etc. Os estudos que têm conferido destaque à subjetividade, identidade e personalidade do professor adotam como pressuposto geral que a sociedade contemporânea passaria por um processo de aceleradas mudanças5, o que exigiria do professor a competência para acompanhá-las. Neste sentido, as novas proposições parecem ter como objetivo central esse desenvolvimento.
Por diferentes estratégias, tais como a afirmação de que não é só por meio da escola que se ensina e que se aprende, pela apologia dos conhecimentos adquiridos experiencialmente, pela importância atribuída à reflexão crítica da própria prática, pelo primado do conhecimento que a vida proporciona, pela necessária ‘criatividade’ da atividade docente etc., ratifica-se a cotidianidade do contexto escolar, bem como a particularização e individualização do ensino.
Essas novas referências, apresentadas por discursos bastante sedutores sobre a valorização da pessoa e sua subjetividade, destacam como figura central do cenário educacional a formação pessoal particular do professor. Todavia, consideramos que esse destaque pode ter duas consequências muito nefastas para a educação escolar. A primeira delas representa o deslocamento da atenção do conhecimento para o autoconhecimento, fato já experienciado com o movimento escola novista e que teve como resultado a baixa qualidade de ensino, decorrente da despreocupação para com a transmissão do saber historicamente sistematizado.
A segunda consequência, em íntima relação com a primeira, implica que, ao conferir primazia à figura do professor e sua formação, retira-se de foco aquilo que está no âmago da ‘crise’ educacional contemporânea, isto é, a função social da escola. Pretere-se, a passos largos, que a função essencial da escola é a socialização do conhecimento historicamente sistematizado, é corroborar na promoção de apropriações imprescindíveis para o pleno desenvolvimento das capacidades humanas e, da mesma forma, não se leva em conta que essa função não se exerce na centralidade das esferas da vida cotidiana.
Como afirma Heller (1970), o homem já nasce inserido em sua cotidianidade e seu desenvolvimento primário identifica-se com a aquisição das habilidades e dos conhecimentos necessários para vivê-la por si mesmo. Entretanto, um desenvolvimento qualitativamente superior, a plena humanização dos indivíduos, pressupõe a apropriação de formas de elevação para além da vida cotidiana e, nesse processo, a escola tem um papel imprescindível.
Consideramos que a estreita vinculação entre particularidades pessoais, aprendizagem e quotidiano, possa ter a seguinte consequência: os professores já não precisarão aprender o conhecimento historicamente acumulado, pois já não mais precisarão ensiná-los aos seus alunos, e ambos, professores e alunos, cada vez mais empobrecidos de conhecimentos pelos quais possam compreender e intervir na realidade, com maior facilidade se adaptarão a ela pela primazia da alienação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Numa sociedade em que as relações capitalistas predominam de uma forma quase universal, o sistema subjectivo de referência configurador da personalidade encontra-se, para a grande maioria das pessoas, marcado pelo hiato entre as actividades que, prioritariamente, produzem, desenvolvem ou especificam capacidades e aptidões que se colocam a serviço de sua verdadeira humanização e actividades que desenvolvem capacidades conformadoras da força de trabalho, cujos resultados se revertem directamente em benefício da produção social em detrimento da maior parcela da população, com predomínio das segundas sobre as primeiras.
Esse predomínio representa o maior obstáculo para que os indivíduos sejam sujeitos inteiros e existam, portanto, de um modo inteiramente humano. A cisão que se instala na organização da vida concreta das pessoas não isenta a subjectividade nela construída, criando cisões, também, no interior da própria personalidade. Os universos de significação social e pessoal que coabitam o sistema subjectivo de referência para as relações do homem com a realidade se tornam, cada um deles, o instrumento de negação do outro, comprometendo a articulação entre as dimensões objetiva e subjetiva presentes naquilo que realiza.
Ao se perder de vista a natureza concreta da personalidade humana perde-se também de vista a natureza concreta da educação. Assim, consideramos que qualquer projecto educativo que de facto reconheça a importância da personalidade do professor não pode preterir o seguinte facto: uma das exigências para o desenvolvimento das capacidades humanas é a apropriação da cultura, material, científica e teórico-técnica, condição preliminar para a decodificação do real, para a interpretação dos factos e de si mesmo, para a superação da aparência em direção à essência, enfim, para o estabelecimento de relações cada vez mais conscientes para consigo próprio e para com o mundo.
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo, Martins Fontes, 1998. BURTON, A. Teorias Operacionais da Personalidade. Rio de Janeiro: Imago, 1978.
ESTEVE, J. M. Mudanças sociais e função docente. In: NÓVOA, A. (Org.). Profissão docente. Lisboa: Porto Editora, 1991. p. 93-124.
GARCIA, G. M. A formação de professores. In: NÓVOA, A. (Org.). Os professores e sua formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote/Instituto de Inovação Educacional, 1997. p. 51-76.
GÓMEZ, A. P. O pensamento prático do professor: a formação do professor reflexivo. IN: NÓVOA, A. (Org.). Os professores e sua formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote/Instituto de Inovação Educacional, 1997. p. 93-114.
HELLER, A. O cotidiano e a história. Barcelona: Ediciones Península, 1970.
JACOBY, R. Amnésia social: uma crítica à psicologia conformista, de Adler a Laing. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
LEONTIEV, A. N. Atividad, consciência y personalidad. Buenos Aires: Ciências del Hombre, 1978.
MARTINS, L. M. A formação social da personalidade do professor: um enfoque vigotskianao. Campinas: Autores Associados, 2007.
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 3-48.
POLO - CAXITO
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A PERSONALIDADE DO PROFESSOR
Caxito, 2019
A PERSONALIDADE DO PROFESSOR
Trabalho do Curso de Psicologia apresentado ao ISTA, como parte de requisito para a avaliação na cadeira de Psicologia Educacional.
Grupo nº 4
3º Ano
Período: Tarde
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AUTORES
1. Catarina Matoso Pedro de Andrade
2. Darucha Francisco da Fonseca
3. Maria Sebastião de Gouveia Leite
4. Santa Sebastião Moralis Matos
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 5
ENQUADRAMENTO DO TEMA 6
1.1- A Personalidade do Professor 6
1.2- Sobre a categoria Personalidade 7
1.3- A personalidade humana em sua Essencialidade Concreta 10
1.4- Denominamos esse sistema de Personalidade 11
1.5- A personalidade do Professor em Questão 12
CONSIDERAÇÕES FINAIS 14
REFERÊNCIAS 15
INTRODUÇÃO
O trabalho que aqui apresentado foi elaborado a partir do tema a Personalidade do Professor. As demandas pela formação do indivíduo apto a adequar-se-á esses novos tempos, obviamente, recaíram sobre a educação escolar. No esteio da reestruturação do capital em curso, as ideias da ‘teoria do capital humano’ tornaram-se palavras de ordem.
A formação da mão de obra tecnicamente adequada ao perfil dos novos postos de trabalho subjugava, a passos largos, a educação escolar, tanto na prescrição de seus conteúdos, cada vez mais pragmáticos, quanto na prescrição dos seus métodos e técnicas de ensino, cada vez mais enfatizados.
ENQUADRAMENTO DO TEMA
1.1- A Personalidade do Professor
A temática referente à personalidade do professor tem sido recorrentemente apelada no campo das pesquisas em educação. A ênfase conferida a esse fenômeno é um dado relativamente recente e desponta alinhada à discussão mais ampla, qual seja, a própria formação docente. Importante indicar, ainda que introdutoriamente, algumas características que marcaram o contexto educacional no qual despontou a emergência dos estudos sobre a temática em pauta. Segundo Saviani (2007), ao final da década de 1960 e década de 1970, novos parâmetros de organização e gerenciamento do sistema produtivo se contrapuseram ao modelo taylorista-fordista e, como consequência, a ordem social passou a subjugar-se de modo praticamente absoluto aos preceitos da acumulação flexível.
Ainda segundo esse autor, nas décadas subsequentes e até o final do século XX, especificamente no campo educacional, verificou-se a ascensão da concepção pedagógica produtivista, no bojo da qual despontaram, simultaneamente, o acirramento das concepções tecnicistas e os debates crítico-filosóficos acerca dos limites e possibilidades da educação escolar na sociedade do capital, à luz dos quais se desenvolveu a visão “crítico reprodutivista”. Mas, foi também a esse tempo que se anunciaram ideários contra hegemônicos, a exemplo das orientações pedagógicas para uma “educação popular”, da pedagogia crítico-social dos conteúdos e da pedagogia histórico-crítica.
Ao final do século XX houve um recrudescimento de ideários pedagógicos cada vez mais alinhados às demandas das contínuas reestruturações do capital, sintetizados pelo que Saviani (2007) denomina “neoprodutivismo” e suas vertentes, quais sejam, o “neoescolanovismo”, expresso nas pedagogias do “aprender a aprender”, o “neoconstrutivismo”, expresso na individualização da aprendizagem e na “pedagogia das competências” e o “neotecnicismo”, expresso em princípios de administração e gestão da escola cada vez mais voltados às normativas empresariais, a exemplo dos programas de “qualidade total”, cumprimento de metas quantitativistas, sistemáticas de avaliação do produto em detrimento do processo etc.
Essa conjuntura, gestada nas últimas décadas do século passado adentrou o século em curso, subsidiando um cenário no qual emergiram inúmeros questionamentos em relação à educação escolar. Dentre eles, proclamou-se à viva voz a necessidade de se recriar a escola e, igualmente, a formação de professores. Acirraram-se as críticas que conclamaram o fim de um modelo de escola, considerado arcaico e racionalista, a ser superado por um outro, apto à preparação de indivíduos para o novo século e no qual, mais importante que aprender, seria “aprender a aprender”.
Outro fato digno de nota desponta, também, no esteio desse contexto: a escola estaria em ‘crise’ e os professores, cada vez mais ‘adoecidos’. À medida da denegação das análises que colocam no cerne desse problema o próprio esvaziamento da educação escolar promovido pelos avassaladores avanços do neoescolanovismo e do neoconstrutivismo, a busca por estratégias alternativas de formação, tanto dos professores quanto dos alunos, se converteu em palavras de ordem.
Nessa busca, são anunciados novos pressupostos para a formação de professores, pressupostos esses, representativos do ideal neoconstrutivista de individualização do ensino. Visando a promoção do pensamento autônomo e de competências, tais como criactividade, flexibilidade, enfrentamento de mudanças etc.; bem como incentivando inúmeras estratégias de auto formação, a ênfase recai cada vez mais sobre as características pessoais, vivências profissionais, construção de identidade pessoal e profissional etc. Entrecruza-se de modo quase absoluto o eu pessoal e o eu profissional.
Ter o ensino escolar como objeto de estudo passa a estar cada vez mais atrelado ao reconhecimento do papel da subjetividade do professor no exercício de seu trabalho. No Brasil, a obra do educador Antônio Nóvoa tornou-se referência basilar na disseminação de ideias que afirmam a intercondissionabilidade entre a personalidade do professor; seu ser e maneira de ser; e a atividade docente, inaugurando o que tenho denominado de “escola nóvoa” no campo das pesquisas em educação.
Não desconsideramos a importância da personalidade do professor para o exercício de seu trabalho e, exatamente por essa razão, defendemos a necessidade de se saber, afinal, o que é personalidade e como ela se desenvolve. Da mesma forma, quais são as reais possibilidades para que a ênfase a ela conferida se expresse, de fato, como acréscimo de valor para a educação escolar. Entendemos que esse esclarecimento é indispensável para qualquer análise que se faça acerca de suas expressões, tanto no que se refere à formação quanto ao exercício da profissão docente. Sobre essas questões versaremos na sequência.
1.2- Sobre a categoria Personalidade
O destaque à categoria personalidade marca a própria história da psicologia, ciência que trouxe para si os imensos desafios impostos à compreensão da subjectividade humana, expressa na maneira de ser dos indivíduos. Essa história nos revela que a maioria das teorias da personalidade tem suas origens e desenvolvimento nos processos psicoterápicos, dado que nos permite afirmar a existência de uma relação diretamente proporcional entre o enfrentamento de dificuldades ou sofrimento psíquico vividos pelas pessoas e o relevo teórico conferido a essa categoria.
O psicólogo norte americano Arthur Burton (1978) já dizia que a ansiedade é a mãe das teorias da personalidade, posto que em ‘situações normais’ pouco se apela à maneira de ser dos indivíduos. Porém, quando fissuras se instalam nelas, facilmente se convertem em objeto de destaque na psicologia. Não por acaso, entre as teorias da personalidade e as teorias da psicopatologia existe em elevado grau de concordância. Assim, não é dado novo na história da psicologia, nem nos causa estranheza por conhecermos a referida história, que diante dos inúmeros desafios impostos ao trabalho do professor, apele-se às expressões de sua personalidade.
Todavia, não obstante a relevância desta categoria nos campos psi (psicologia, psiquiatria, psicopatologia, psicanálise etc.), poucos conceitos se mantêm tão obscuros e polissêmicos quanto o conceito personalidade. Tal facto, porém, não resulta de nenhum mistério oculto na subjetividade dos seres humanos, mas da impropriedade e artificialidade presentes nos caminhos lógico-formais e idealistas trilhados na busca da explicação dos fenômenos psicológicos.
Vygotsky (1997), em seu clássico artigo intitulado O significado histórico da crise da Psicologia, datado de 1927 e, paradoxalmente, extremamente atual, analisou os limites da psicologia tradicional que, em seu pluralismo teórico-metodológico, poucas chances teria para se firmar como ciência, na correta acepção do termo. Para ele, na configuração multifacetada da psicologia, qualquer fato psicológico expresso em cada um de seus sistemas teóricos independentes assumirá formas totalmente distintas, convertendo-se em diferentes fatos. Daí que:
À medida que a ciência avance, à medida que se acumulem os fatos, obteremos sucessivamente generalizações distintas, classificações distintas ciências distintas, que se tornarão tanto mais distantes do fato comum que as unia e tanto mais distantes uma das outras, quanto maior seja o êxito com que se desenvolvam.
Diante do exposto, resta-nos constatar que qualquer apelo que se faça a fatos psicológicos, no caso à categoria personalidade; como o que vemos ocorrer no âmbito da formação de professores; requer esclarecimentos acerca do que ela seja. A utilização desse termo despida de fundamentos teórico-metodológicos não passa de mera abstração, torna-se inócua, podendo contribuir para mais um tipo de psicologização do espaço escolar.
A apresentação das inúmeras teorias da personalidade ultrapassa os objetivos e possibilidades desse texto, entretanto, elas podem ser classificadas em três grandes grupos, tomando-se como critério os sentidos filosóficos conferidos à relação entre personalidade e pessoa. Segundo Abbagnano (1998) existem três fases nos estudos e utilização desses conceitos. Primeiramente, esse termo foi introduzido na linguagem filosófica pelo estoicismo popular para designar papeis representados pelo homem. O conceito de papel aponta o conjunto de relações comportamentais que situam o homem em dada situação e o definem com respeito a ela. Nessa direção, a relação homem-situação é o dado que o afirma e caracteriza. Desdobram-se de tal posição filosófica tanto a teoria behaviorista2 quanto cognitivista.
Na segunda fase, o termo pessoa aparece como auto-relação, ou seja, em sentido de relação do homem para consigo mesmo, com o eu como consciência de si. Esse termo designa o homem como ser capaz de representar-se conscientemente e que desenvolve uma unidade interna apta a resistir e atravessar todas as transformações pelas quais passa. O homem é então uma pessoa pelo desenvolvimento da identidade consciente do eu (self), pela qual adquire o conhecimento distintivo de si mesmo e do universo, superando a inconsciência sobre os mesmos. Pessoa, portanto identifica-se com consciência, vista como simples referência ao homem em sua individualidade.
Essa posição ancora as teorias da personalidade psicodinâmicas (psicanálise, psicologia junguiana, lacaniana etc.), bem como fenomenológico-humanistas (teoria centrada na pessoa, teoria da auto-atualização, teoria interpessoal etc.), que tomam como objeto a vida subjetiva, ou, intrapsíquica, pressupondo-a como estrutura ou propriedades internas inerentes aos seres humanos.
Contra essa interpretação de pessoa surgem posições filosóficas caracterizadoras da terceira fase, que se recusam a reduzir o ser do homem à consciente/inconsciente ou a autoconsciência. Destacam-se entre essas posições aquelas veiculadas pela antropologia de esquerda hegeliana e pelo marxismo, que, embora não tenham como objetivo central o estudo desse conceito, iniciam sua renovação evidenciando a interdependência entre o ser dos homens e as relações sociais de produção, isto é, de trabalho. Nesta perspectiva o conceito de pessoa não se identifica com eu (self) ou consciência, representando, outrossim, a ação humana sobre o mundo. O homem é pessoa como unidade individual exatamente porque é heterorrelação intencional, ou seja, essencialmente construído por suas relações com os outros homens e com o mundo.
Em pesquisa realizada por Martins (2007) acerca do destaque conferido à personalidade do professor pelos ideários pedagógicos em voga, a autora buscou identificar o aporte teórico que lhes dá sustentação e, da mesma forma, os significados atribuídos a esse conceito. Os resultados desta investigação evidenciam que os referidos ideários pedagógicos não apresentam de modo explícito sua concepção de personalidade. O tratamento dispensado a esse conceito permite-nos, meramente, deduzir que personalidade aparece como sinônimo da maneira de ser da pessoa, e essa, possuidora de uma essência com qualidades universais e inalienáveis, independentemente das condições objetivas em que se desenvolvem.
Evidencia-se, portanto, que o conceito de pessoa desponta em acentuada conformidade com a segunda fase anteriormente descrita, que afirma uma concepção idealista, identificando pessoa e autoconsciência. É essa concepção que tem contaminado historicamente as teorias da personalidade, dotando-as de significados essencialmente subjetivistas e abstratos.
A pessoa e a personalidade do professor aparecem como unidade e propriedade de um ser particular, cuja sociabilidade não ultrapassa os estreitos limites do entorno social imediato. Essa proposição é característica de um humanismo artificial, que suplanta a realidade concreta, ou, a concebe também artificialmente. Esse modelo dicotomiza lógico formalmente indivíduo e sociedade. Embora as relações entre mundo interno e mundo externo sejam admitidas, a conectividade estabelecida entre eles é linear e restrita, alheia às múltiplas relações que sustentam a vida dos homens.
E mais, conforme disposto por Jacoby (1976), fazer apologia da subjetividade é uma das características centrais do humanismo abstrato. O culto professado a ela aparece e torna-se fundamental à medida de seu aviltamento, portanto, apelá-la fortemente, muito mais que expressar sua importância, poder ser, apenas, uma reação paliativa às ameaças de seu desaparecimento.
A promessa que uma centralização na subjetividade humana oferece fica desperdiçada, a menos que se considere o lugar que lhe cabe na sociedade em geral. Isto porque o culto da subjetividade humana não é a negação da sociedade burguesa e sim a substância desta. A veneração da subjetividade e das relações humanas representa um progresso no culto fetichista. A rejeição da teoria que busca compreender a objetividade em benefício de sentimentos subjectivos reconstitui, ao contrário, uma suspeita tradição cartesiana: sinto, logo existo. O impulso íntimo da sociedade burguesa é jogar o sujeito de volta sobre si mesmo. Receitar mais subjetividade para auxiliar o sujeito avariado, corresponde a receitar mais doença como cura.
O tratamento que vem sendo dispensado à personalidade do professor não foge a essa tradição, cabendo ao indivíduo ‘conhecer-se’ e ‘transformar-se’ tendo em vista a conquista da autonomia e da liberdade. A natureza histórico social da vida pessoal, as mediações políticas e econômicas que sustentam sua construção, parecem ser questões fora de discussão. Não estamos dizendo com isso que tais ideários não reconhecem as relações personalidade-sociedade, mas, que as concebem de maneira meramente empírica, no plano do observável e das interações face a face, tal como o faz a psicologia tradicional burguesa. A personalidade, assim concebida, aparece como epifenômeno da existência social dos homens e a sociedade como o meio ao qual ela deve adaptar-se por força das circunstâncias.
Essas premissas escamoteiam a verdadeira essência humana, que é realizar-se nas relações sociais, quando então as inúmeras possibilidades humanas se realizam ou fracassam no processo histórico social de sua autoconstrução. Marx (1987), ao afirmar na “VI Tese sobre Feuerbch” que a essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular, mas o conjunto das relações sociais, apresenta uma verdade denegada pela psicologia tradicional burguesa e pelas teorias pedagógicas alinhadas a ela. Tais teorias, por não desvelarem objetivamente o ser dos homens, versam sobre os fenômenos psicológicos, a exemplo da personalidade, como dados existentes por si mesmos, ou, expressões do indivíduo apreendido isoladamente.
Afirmamos, portanto, a necessidade de um reconhecimento indispensável ao tratamento da questão em tela: a personalidade dos homens é determinada pelas relações que estabelecem com o mundo, físico e social, por meio da atividade. Assim, as características desse mundo circunscrevem as condições de seu desenvolvimento.
1.3- A personalidade humana em sua Essencialidade Concreta
Diante do exposto, asseveramos que a compreensão da personalidade exige a compreensão da natureza essencial do homem. Determina a compreensão do movimento de seu desenvolvimento, que tem em sua base a atividade objetivada, isto é, o trabalho social. Ao produzir os seus meios de existência o homem se produz a si mesmo, dado determinante da seguinte constatação: nenhum homem, por mais vasta que seja sua atividade, pode produzir individualmente tais meios e, consequentemente, a si próprio.
Nessa direção, o tratamento dispensado à personalidade humana em sua essencialidade concreta determina a análise da dimensão ontológica do trabalho social. Segundo Marx (1978) é pelo trabalho, atividade vital humana, que o homem se firma como sujeito de sua existência, construindo um mundo humano e humanizando-se nessa construção. Visando o controle da natureza como condição para a satisfação de suas necessidades, na unidade complexa que se institui entre cérebro, mãos e linguagem, do antropóide ao homem, desenvolveram-se dispositivos culturais, isto é, não mais naturais, para o referido controle.
A actividade humana determina nas diversas e históricas maneiras de sua manifestação a formação de capacidades, motivos, finalidades, sentido, sentimentos etc.; engendrando um conjunto de processos pelos quais o indivíduo adquire existência psicológica. À luz desses postulados marxianos, Vygotski (1995) afirmou que às características biológicas asseguradas pela evolução da espécie, às funções psíquicas elementares, seriam acrescidas outras funções, produzidas na história de cada indivíduo, chamando-as de funções psíquicas superiores.
1.4- Denominamos esse sistema de Personalidade
Portanto, a personalidade compreende o ‘estilo pessoal de ser’, expressa a dinâmica de procedimentos e modos de atuar da pessoa, referida pelo universo de significações e sentidos experienciado. Em sua construção operam aspectos que dependem de propriedades naturais e comuns a todos os homens, a exemplo das funções psíquicas elementares e do temperamento; aspectos que dependem das formações culturais, dos povos, classes e grupos, bem como aspectos da história individual, das vivências particulares da pessoa.
Inconteste, pois, que a personalidade resulta da atividade do indivíduo condicionada por condições objetivas, isto é, pela história de objetivações efetivadas. Essa afirmação não subtrai da personalidade sua dimensão subjetiva mas afirmar sua objetividade, uma vez que a personalidade de cada indivíduo não é produzida por ele solitariamente, outrossim, como resultado da atividade social e, em certo sentido, não depende de seu desejo, mas, da trama de relações que se estabelecem entre eles.
Segundo o referido autor, o homem, como indivíduo, nasce dotado de necessidades vitais, elementares, que são inicialmente satisfeitas pelas ações de outras pessoas. À medida de seu desenvolvimento, com a ampliação dos domínios sobre a realidade, vão se estabelecendo vínculos cada vez mais dinâmicos entre as necessidades, estados carenciais, e os objetos capazes de atendê-las. Esses vínculos evidenciam que o estado de necessidade do sujeito não está ‘registrado’ no objeto; que precisa, então, ser ‘descoberto’.
Tais proposições visaram o enfoque da categoria personalidade em sua essencialidade concreta, o que, em síntese, representa afirmá-la como produto da atividade especificamente humana, sabendo que essa especificidade reside na aquisição de propriedades que capacitam o homem para intencionar, projetar e implementar operacionalmente seu projeto. Ocorre, porém, que vivemos numa sociedade de classes, injusta e desigual, que impõe, à maioria dos indivíduos, a organização de suas vidas em função das possibilidades concretas determinadas por esse modelo de organização social.
Assim, para que possamos de fato conceber a personalidade do professor como uma das referências no trabalho pedagógico, considerando-a acréscimo de valor para o mesmo, não podemos perder de vista as condições histórico-sociais que circunscrevem a sua formação. Entendemos premente e por anterioridade, que se ‘devolva’ aos indivíduos as condições objetivas requeridas ao pleno desenvolvimento de suas próprias personalidades.
E, entender a essência humana como relações sociais internalizadas, determina o reconhecimento de que tais relações são produzidas pelos homens por meio das atividades que realizam e que têm em suas bases as relações sociais de produção. Essas relações, na sociedade de classes, não produzem ‘apenas coisas’, mas, muitas vezes, ao próprio homem como tal. É fato existir no indivíduo uma singularidade irredutível às coordenadas sociais, mas a essência dessa singularidade é exatamente a sua constituição como ser social. Diante do exposto, nos perguntamos: é possível conferir centralidade à personalidade do professor no processo educativo, sem levar em conta as relações de alienação e suas consequências na subjetividade humana?
1.5- A personalidade do Professor em Questão
Conforme apresentado, a personalidade é uma formação psicológica que se institui como resultado das transformações das atividades que pautam a relação do indivíduo com o meio físico e social. Tal facto exige a superação de concepções centradas na proposição de uma estrutura natural interna na personalidade, que se desenvolverá nos limites da história particular do indivíduo e na dependência de seus esforços pessoais. Afirmamos, portanto, que as múltiplas possibilidades do processo de personalização se realizam na constante auto realização da pessoa, ante a realidade social na qual se insere. Trata-se, pois, do destaque necessário à articulação entre a pessoa e a qualidade de suas condições de existência; uma vez que essas condições, se por lado guardam as possibilidades para sua realização, por outro, em condições de alienação, determinam seu obliteramento. Ao romper a articulação necessária entre o trabalho e seu resultado, a alienação cria profundas contradições na existência humana.
As pessoas deixam de ser sujeitos do desenvolvimento de suas capacidades individuais, de suas histórias, do seu próprio crescimento, convertendo-se em executores de tarefas que não são definidas por elas. Com isso, sentimentos como a resignação, a passividade e indiferença, o conformismo e a desesperança são gerados e expressos em diferentes formas de sofrimento psicológico ou outros adoecimentos, representativos da despersonalização advinda da falta de sentido da vida ou de sua mistificação. Conforme sinalizado na introdução desse texto, nas duas últimas décadas, encontramos referências frequentes à personalidade do professor, fundamentalmente relacionadas às novas demandas de sua formação e exercício profissional.
Dentre elas se incluem as considerações negativas sobre o ato de ensinar e sobre a pedagogia científica que legitima a racionalização do ensino, sobre a valorização, considerada excessiva, dos conteúdos científicos que embasam os conteúdos escolares etc. Os estudos que têm conferido destaque à subjetividade, identidade e personalidade do professor adotam como pressuposto geral que a sociedade contemporânea passaria por um processo de aceleradas mudanças5, o que exigiria do professor a competência para acompanhá-las. Neste sentido, as novas proposições parecem ter como objetivo central esse desenvolvimento.
Por diferentes estratégias, tais como a afirmação de que não é só por meio da escola que se ensina e que se aprende, pela apologia dos conhecimentos adquiridos experiencialmente, pela importância atribuída à reflexão crítica da própria prática, pelo primado do conhecimento que a vida proporciona, pela necessária ‘criatividade’ da atividade docente etc., ratifica-se a cotidianidade do contexto escolar, bem como a particularização e individualização do ensino.
Essas novas referências, apresentadas por discursos bastante sedutores sobre a valorização da pessoa e sua subjetividade, destacam como figura central do cenário educacional a formação pessoal particular do professor. Todavia, consideramos que esse destaque pode ter duas consequências muito nefastas para a educação escolar. A primeira delas representa o deslocamento da atenção do conhecimento para o autoconhecimento, fato já experienciado com o movimento escola novista e que teve como resultado a baixa qualidade de ensino, decorrente da despreocupação para com a transmissão do saber historicamente sistematizado.
A segunda consequência, em íntima relação com a primeira, implica que, ao conferir primazia à figura do professor e sua formação, retira-se de foco aquilo que está no âmago da ‘crise’ educacional contemporânea, isto é, a função social da escola. Pretere-se, a passos largos, que a função essencial da escola é a socialização do conhecimento historicamente sistematizado, é corroborar na promoção de apropriações imprescindíveis para o pleno desenvolvimento das capacidades humanas e, da mesma forma, não se leva em conta que essa função não se exerce na centralidade das esferas da vida cotidiana.
Como afirma Heller (1970), o homem já nasce inserido em sua cotidianidade e seu desenvolvimento primário identifica-se com a aquisição das habilidades e dos conhecimentos necessários para vivê-la por si mesmo. Entretanto, um desenvolvimento qualitativamente superior, a plena humanização dos indivíduos, pressupõe a apropriação de formas de elevação para além da vida cotidiana e, nesse processo, a escola tem um papel imprescindível.
Consideramos que a estreita vinculação entre particularidades pessoais, aprendizagem e quotidiano, possa ter a seguinte consequência: os professores já não precisarão aprender o conhecimento historicamente acumulado, pois já não mais precisarão ensiná-los aos seus alunos, e ambos, professores e alunos, cada vez mais empobrecidos de conhecimentos pelos quais possam compreender e intervir na realidade, com maior facilidade se adaptarão a ela pela primazia da alienação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Numa sociedade em que as relações capitalistas predominam de uma forma quase universal, o sistema subjectivo de referência configurador da personalidade encontra-se, para a grande maioria das pessoas, marcado pelo hiato entre as actividades que, prioritariamente, produzem, desenvolvem ou especificam capacidades e aptidões que se colocam a serviço de sua verdadeira humanização e actividades que desenvolvem capacidades conformadoras da força de trabalho, cujos resultados se revertem directamente em benefício da produção social em detrimento da maior parcela da população, com predomínio das segundas sobre as primeiras.
Esse predomínio representa o maior obstáculo para que os indivíduos sejam sujeitos inteiros e existam, portanto, de um modo inteiramente humano. A cisão que se instala na organização da vida concreta das pessoas não isenta a subjectividade nela construída, criando cisões, também, no interior da própria personalidade. Os universos de significação social e pessoal que coabitam o sistema subjectivo de referência para as relações do homem com a realidade se tornam, cada um deles, o instrumento de negação do outro, comprometendo a articulação entre as dimensões objetiva e subjetiva presentes naquilo que realiza.
Ao se perder de vista a natureza concreta da personalidade humana perde-se também de vista a natureza concreta da educação. Assim, consideramos que qualquer projecto educativo que de facto reconheça a importância da personalidade do professor não pode preterir o seguinte facto: uma das exigências para o desenvolvimento das capacidades humanas é a apropriação da cultura, material, científica e teórico-técnica, condição preliminar para a decodificação do real, para a interpretação dos factos e de si mesmo, para a superação da aparência em direção à essência, enfim, para o estabelecimento de relações cada vez mais conscientes para consigo próprio e para com o mundo.
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo, Martins Fontes, 1998. BURTON, A. Teorias Operacionais da Personalidade. Rio de Janeiro: Imago, 1978.
ESTEVE, J. M. Mudanças sociais e função docente. In: NÓVOA, A. (Org.). Profissão docente. Lisboa: Porto Editora, 1991. p. 93-124.
GARCIA, G. M. A formação de professores. In: NÓVOA, A. (Org.). Os professores e sua formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote/Instituto de Inovação Educacional, 1997. p. 51-76.
GÓMEZ, A. P. O pensamento prático do professor: a formação do professor reflexivo. IN: NÓVOA, A. (Org.). Os professores e sua formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote/Instituto de Inovação Educacional, 1997. p. 93-114.
HELLER, A. O cotidiano e a história. Barcelona: Ediciones Península, 1970.
JACOBY, R. Amnésia social: uma crítica à psicologia conformista, de Adler a Laing. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
LEONTIEV, A. N. Atividad, consciência y personalidad. Buenos Aires: Ciências del Hombre, 1978.
MARTINS, L. M. A formação social da personalidade do professor: um enfoque vigotskianao. Campinas: Autores Associados, 2007.
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 3-48.
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