RELAÇÕES CULTURAS ANGOLANAS

 

INSTITUTO SUPERIOR TÉCNICO DE ANGOLA

 ISTA

CURSO DE PSICOLOGIA

 

 

 

 

 

 

RELAÇÕES CULTURAS ANGOLANAS

 

 

 

 

 

 

 

 

CAXITO - BENGO

-2022






INSTITUTO SUPERIOR TÉCNICO DE ANGOLA

 

 

 

 

 

 

RELAÇÕES CULTURAS ANGOLANAS

 

 

Trabalho científico apresentado ao professor Jacob Mário, como requisito necessário para a avaliação na cadeira de Antropologia Cultural.

 

 

 

GRUPO N° 03

ANO

SALA: 04

PERÍODO: TARDE

 

 

 

 

 

CAXITO - BENGO

-2022

 






INTEGRANTES DO GRUPO

 

 

1.      Fernando Inácio

2.      Felisberta Manuel

3.      Maria André

4.      Evalina Cutandala

5.      Madalena Carvalho

6.      Gomes Gomes

7.      Inácio Gama

8.      João Lourenço

9.      Elsa Ferreira

10.  Garcia Chaves

11.  Marcelina da Silva

 











RESUMO

 

A riqueza cultural de Angola manifesta-se em diferentes áreas. No artesanato, destaca-se a variedade de materiais utilizados. Através de estatuetas em madeira, instrumentos musicais, máscaras para danças rituais, objectos de uso comum, ricamente ornamentados, pinturas a óleo e areia, é comprovada a qualidade artística angolana, patente em museus, galerias de arte e feiras. Associado às festas tradicionais promovidas por etnias locais está também um grande valor cultural. A presença constante da dança no quotidiano é produto de um contexto cultural apelativo para a interiorização de estruturas rítmicas desde cedo. Iniciando-se pelo estreito contacto da criança com os movimentos da mãe (às costas da qual é transportada), esta ligação é fortalecida através da participação dos jovens nas diferentes celebrações sociais (os jovens são os que mais se envolvem), onde a dança se revela determinante enquanto factor de integração e preservação da identidade e do sentimento comunitário. Depois de vários séculos de colonização portuguesa, Angola acabou por também sofrer misturas com outras culturas e a música anuncia a riqueza artística de Angola, com os ritmos do kizomba, semba, rebita, cabetula, kilapanga e os novos estilos, como o zouk e kuduro, a animar as noites africanas. As danças tradicionais assumem, paralelamente, a sua relevância, a par da gastronomia rica e variada. A literatura angolana tem origem no século XIX, com uma função marcadamente “intervencionista e panfletária de uma imprensa feita pelos nativos da terra”, sendo que a mesma reflecte também a riqueza cultural do país. É a cultura que molda a imagem de Angola no mundo. Uma política cultural externa para a representação da diversidade cultural de Angola é, portanto, uma grande preocupação do Governo angolano. Portanto, o presente trabalho tem como objectivo descrever as relações existente entre culturas angolanas.

 

Palavras-chaves: Culturas, identidade de género, tradição, rituais iniciáticos, hegemonia cultural.

 

 

 

 

ÍNDICE

 

INTRODUÇÃO.. 1

2-FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA.. 2

2.1- Relações Entre Culturas da Angola. 2

2.2- Características socioculturais do meio rural 2

2.3- Cultura tradicional bantu. 3

2.4- O lugar da mulher na cultura bantu. 4

2.5- Tradição e preservação cultural identitária. 5

2.6- Tradição e construção social do género em Angola. 6

2.7- Desigualdade de género no meio rural: explicação sociológica. 8

CONSIDERAÇÕES FINAIS. 10

BIBLIOGRAFIA.. 11

 

 


INTRODUÇÃO

 

Nas comunidades rurais, a mulher constitui o pilar da vida familiar e doméstica, cabendo-lhe pesadas responsabilidades nos domínios da educação dos filhos, dos proventos do agregado familiar e da gestão da vida doméstica. Apesar disso, a sua existência pauta-se por uma grande invisibilidade no plano social na medida em que não é chamada a intervir nos processos decisivos da vida comunitária.

No meio rural angolano regista-se forte predominância da tradição cultural, razão pela qual hábitos e costumes locais têm sido preservados, entre os quais os ritos de iniciação que contribuem não apenas para a diferenciação de papéis sexuais mas também para a inferiorização social das mulheres. Tais preceitos são reforçados por lógicas de dominação masculina que tendem a naturalizar a submissão das mulheres.

A educação tradicional comunitária não tem sido abordada na perspectiva da construção da identidade nacional e da cidadania democrática atribuindo-se-lhe, geralmente, uma função de enraizamento cultural. Esta educação radica na Educação Tradicional Africana, cujo princípio basilar é a diferenciação de género. Sendo criticável à luz do princípio da igualdade de direitos, não se pode ignorar o potencial educativo quanto ao resgate da identidade dos angolanos enquanto bantu.

Nesta base, no quadro da evolução democrática da sociedade angolana e das políticas educativas e culturais considerando a diversidade cultural do país. Trata-se de saber como se pode influenciar os valores da educação tradicional no meio rural fundados em perspectivas culturais nem sempre compagináveis com a dignidade humana. Assim, é de se questionar como se pode, no contexto dos direitos de cidadania, garantir a igualdade de género no meio rural angolano tendo em conta o princípio da igualdade de direitos e a obrigação ética de dignificação da mulher.

 

 

 

 

2-FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

 

2.1- Relações Entre Culturas da Angola

A cultura angolana é por um lado tributária das etnias que se constituíram no país há séculos - principalmente os ovimbundos, ambundos, congos, chócues e ovambos.

A Angola apresenta uma grande riqueza cultural derivada das diversas etnias que compõem a sua população. Cada uma delas possui um conjunto de costumes e tradições próprio que contribui para a formação do quadro nacional. O país reúne a segunda maior população falante de português do mundo, atrás apenas do Brasil, mas diversas outras línguas são faladas no território angolano, como kimbundu, umbundu, fiote, nhanheca, kikongu, tchokwe e kwanyama.

Além das celebrações tradicionais de cada uma das etnias do país, existem algumas festas realizadas anualmente que envolvem toda a nação e atraem pessoas de todos os lugares, como o Carnaval, destacando-se o realizado em Luanda, e a Festa da Nossa Senhora da Muxima em Kissama, onde se localiza o seu santuário.

O artesanato é um elemento típico da cultura angolana, assim como os mais diversos estilos musicais e de dança, antigos e recentes, que expressam a pluralidade cultural do país, sendo alguns deles: semba, rebita, cabetula, kuduro, zouk e kizomba.

A culinária angolana utiliza ingredientes tropicais e típicos da região, recebendo ainda um pouco da influência portuguesa. O funge é um dos pratos tradicionais da Angola, comparado muitas vezes a um pirão, e é feito à base de mandioca ou milho, variando regionalmente. Dentre seus acompanhamentos está o calulu, à base de carne vermelha ou peixe, e outros ingredientes.

2.2- Características socioculturais do meio rural

O meio rural em Angola pode ser caracterizado por indicadores que denotam um modo de vida precário, revelado por: estilo de vida simples, à margem das tecnologias e do mundo letrado; recurso a ferramentas tradicionais e obsoletas; actividade produtiva ligada à agricultura de subsistência e pastorícia; povoações dispersas, isoladas, com limitadas condições básicas de vida sendo que apenas 22,8% da população tem acesso a água potável e 31,1% a saneamento básico [INE 2009]; escassez de equipamentos sociais; taxas de analfabetismo na ordem de 46% para os homens e 66% para as mulheres [UNICEF 2011: 96]; prática de ritos de passagem à idade adulta; vida comunitária regida pelas lógicas da gerontocracia; isolamento e algum fechamento à influência cultural externa [Altuna 1974: 215].

Este é um quadro desfavorável que não só torna difícil a vida a estas pessoas como também as remete para condições pouco dignas de existência. Em contrapartida, elas agarram-se àquilo que lhes é mais valioso e significativo: a tradição cultural mediante a qual resgatam o sentido de identidade e dignidade, reportados aos valores e interesses da comunidade na qual encontram compreensão e solidariedade. Sobre esta questão, Melo [s.d.: 2] refere mesmo que “a manutenção dos seus usos e costumes bem como das suas crenças tradicionais é para muitos a base da sua sobrevivência”.

Neste meio, a função social da mulher liga-se ao casamento, à maternidade, ao lar e à educação dos filhos pelo que a sua dignidade depende do modo como ela honra a família. Valoriza-se a sua função de educadora expressa no provérbio que afirma que “para educar um homem, eduque-se a criança, para educar uma aldeia, eduque-se a mulher”. Apesar disso, a sua visibilidade social é reduzida e a sua intervenção na vida comunitária não extravasa o contexto doméstico, pelo que Altuna [1993: 165 e 256] considera que “a mulher é a agricultora-mãe-esposa-dona de casa-doadora de sangue-linhagem”. A socialização desta opera-se no âmbito das lógicas sexistas e de dominação masculina [Bourdieu, 1999], subjugada pela tradição e reforçada por ritos iniciáticos. Desde cedo, o destino da mulher fica traçado e ela não tem como lhe escapar.

2.3- Cultura tradicional bantu

A cultura bantu representa a marca específica das populações da África Negra e tem grande influência na vida comunitária em Angola, em particular no meio rural, ainda relativamente preservado da influência cultural decorrente da colonização, da modernização e da globalização. No geral, essa cultura caracteriza-se por: regime de patriarcado e gerontocracia, que pressupõe a prevalência do poder dos anciãos, sendo estes considerados fonte normativa da comunidade; papel secundário da mulher, tendo influência apenas no contexto doméstico, como esposa, mãe e educadora [Altuna 1993: 259]; os jovens de ambos os sexos são sujeitos a rituais de passagem à vida adulta, adquirindo o estatuto de membros de pleno direito; casamento precoce das raparigas uma vez que a sua realização como pessoas depende disso, sendo que “a auréola de dignidade e prestígio brota da sua fecundidade” [Altuna 1993: 260].

 Tal facto impede a conclusão da escolaridade obrigatória, não valorizada socialmente porque, para ser doméstica, essa escolaridade não faz falta; endoculturação forte mediante mecanismos de coerção, visando preservar as tradições culturais, os papéis sexuais e a estabilidade da comunidade; subordinação da mulher, que deve honrar a família, aceitando o casamento, dignificando o nome do esposo e preocupando-se com a gestão do lar; prevalência da poligamia em muitas comunidades, o que dilui ainda mais o valor social da mulher.

As representações sobre a mulher estão predominantemente associadas à maternidade e aos papéis de mãe e esposa. Reforça-se o seu estatuto inferior, por força da socialização em contexto comunitário, onde a iniciação feminina funciona no sentido de “instruir e preparar as raparigas para todas as funções femininas” [Altuna 1993: 296], pois “para isso é educada e lho exige a vida comunitária” [Altuna 1993: 348].

2.4- O lugar da mulher na cultura bantu

Na sociedade tradicional bantu, a mulher tem sido encarada como elemento complementar ao homem. A este cabem as actividades que exigem força, destreza e resistência e longos períodos fora de casa sendo a mulher remetida para “um campo mais restrito de actividades por causa das frequentes gestações e do cuidado dos filhos” [Altuna 1993: 164-165].

Estabelece-se assim uma divisão do trabalho por sexos reforçada pela ideia de que a mulher, sendo impura por causa da menstruação, não pode executar qualquer actividade, o que alimentou tabus relacionados com limitações à sua participação em certos trabalhos “para não manchá-los com a sua impureza. Além disso, as responsabilidades e tarefas inerentes ao cuidado do lar, do marido e dos filhos retiram-lhe tempo para se ocupar dos assuntos considerados “próprios dos homens”. Um estudo de Greenberg et al. [1997: 37] refere que “para a maioria das mulheres, o seu dia inicia com uma ou duas horas buscando água, seguido de duas ou três horas pisando os cereais. A mulher rural típica gasta todo o dia de trabalho cuidando o campo que ela cultiva com as suas crianças e o seu marido caso tenha um”. Esta faceta da vida da mulher rural ligada à execução de actividades produtivas tem importância económica para a subsistência familiar e até da comunidade [Henderson 1972].

A socialização comunitária é realizada sob consideração da diferenciação de papéis, atribuindo-se a rapazes e raparigas tarefas distintas. Assim, as tarefas desempenhadas pelas raparigas relacionam-se com actividades domésticas femininas. Elas distraem-se com jogos e brincadeiras relacionados com os “ofícios femininos” e restringem-se a ambientes que têm como referência o lar e os futuros papéis de esposa e mãe. Elas estão em estreita interacção com as mães pois é imperioso que assimilem os comportamentos próprios de quem está destinada a ser esposa e mãe. Circunscritas a este ambiente sob o olhar atento das mulheres, as meninas estão permanentemente sujeitas às influências da tradição, de pendor discriminatório, sendo preparadas para o ofício de esposa e mãe. Este é o destino que lhes é irrevogavelmente traçado.

Os ritos femininos realizam-se após o aparecimento da primeira menstruação e são assegurados pelas mulheres mais experientes da aldeia que transmitem às neófitas os mistérios da sexualidade, do nascimento e da fertilidade pois estes ritos visam sobretudo a preparação para o casamento. “A rapariga fica apta para o casamento, para a sua missão fundamental: ser mãe. Os ritos de puberdade definem oficial e publicamente a sua capacidade, valor e estima como procriadora-vivificadora”, como afirma Altuna [1993: 298].

O valor simbólico destes rituais reside do facto de incutir na mente das raparigas o seu valor e estima como procriadoras, considerando que a mulher “é antes de mais um ‘campo vaginal’ destinado a ser fecundado pelo homem” [Altuna 1993: 299]. A iniciação da mulher representa a assunção da sua aptidão para o casamento, que ocorre quase de seguida e mediante o qual alcança a condição de mulher adulta e plena.

Assim, o casamento justifica-se e consolida-se pela fecundidade da mulher que, em geral, tem muitos filhos, o que faz aumentar o seu prestígio social. Não compete, portanto, à mulher, decidir sobre esta matéria, pois segundo Moura [s.d.], “as mulheres que desafiam conscientemente ou por imprudência as proibições ou os tabus expõem-se à reprovação da família e a críticas por vezes violentas da comunidade”. Apesar disso, a sua importância restringe-se ao contexto familiar, levando uma vida doméstica penosa e nem sempre reconhecida. Embora possuindo uma “auréola de dignidade”, a presença da mulher é “invisível” no plano comunitário e social, reservado aos homens.

2.5- Tradição e preservação cultural identitária

No meio rural, a educação escolar pouca influência tem exercido na vida da comunidade, restringindo a sua acção à transmissão de um currículo ao qual nem sempre se reconhece utilidade. Ou seja, a construção da cidadania no meio rural pouco tem beneficiado da escolarização e da educação estatal, cuja missão tem a ver com a inculcação dos valores da igualdade e da dignidade, sendo interferida pelos cânones da tradição baseados na diferenciação sexual, na desigualdade entre os géneros e, como consequência, na inferiorização da mulher.

Para entender esta relação contraditória é preciso regressar ao passado. Em Angola, o conhecimento era tradicionalmente transmitido às novas gerações através dos ritos de iniciação e de outras formas de educação tradicional asseguradas pelos “mais-velhos”. Esta transmissão foi alterada pela colonização que, com as políticas de assimilação, tratou de impor o modo de vida europeu aos africanos.

Na actualidade, a educação escolar tem sido encarada como estranha à cultura da comunidade onde a escola está implantada. Exemplo disso é a utilização da língua portuguesa no ensino de crianças cuja língua materna é de origem bantu, o que cria dificuldades de aprendizagem [Zau 2002]. Por esta razão, a escola oficial enfrenta algumas resistências no meio rural, traduzidas essencialmente no absentismo escolar, mais acentuado entre as meninas.

A colonização conduziu à descaracterização da cultura tradicional, razão pela qual muitas práticas tradicionais foram quase erradicadas. Após a independência, em virtude da ideologia marxista, as práticas tradicionais foram desvalorizadas por terem sido tomadas como obscurantistas ou contrárias aos interesses nacionais. Actualmente, reconhecendo a importância do património cultural representado pela sabedoria popular, o governo angolano vem adoptando políticas culturais para resgatar o capital cultural acumulado nas aldeias para que não ocorra a perda do património tradicional pois é sabido que, “nas sociedades tradicionais, quando morre um ancião perde-se uma biblioteca” [Ba 1972].

As estratégias educativas incluem o recurso à literatura oral, (contos, lendas, mitos, récitas, fábulas, provérbios, adivinhas), às cenas da vida quotidiana, às canções, às danças, aos ritos de iniciação, à simbologia (metáforas, amuletos, talismãs, invocações, bênçãos) e às artes, onde os neófitos aprendem com os adultos e os mestres. Desta forma, as tradições são inculcadas nos jovens, a quem recai a obrigação de as preservar.

2.6- Tradição e construção social do género em Angola

A urbanização das sociedades africanas tem contribuído para a construção de uma nova visão da mulher associada à sua capacidade de participar socialmente e de gerar rendimentos. Contudo, no meio rural, fruto da influência cultural ancestral, não se observa uma verdadeira igualdade democrática entre géneros, encarando-se a mulher como “elemento supletivo”, cabendo-lhe um papel secundário na comunidade onde “não desfruta de um status social igual ao do homem” [Altuna 1993: 257].

As mulheres africanas rurais não conseguem emancipar-se socialmente devido às imposições tradicionais e às representações sociais vigentes atribuindo-se-lhes “trabalhos que exigem delicadeza, cooperação, fecundidade e cuidado da vida” [Altuna 1993: 167].

A cultura tradicional africana foi sendo alterada por introdução de elementos decorrentes da colonização e, agora, da globalização cultural. Essas alterações repercutiram-se nos vários domínios da vida social, mas a persistência dos rituais de iniciação ajudou a reafirmar os valores culturais tradicionais, o que contribuiu para a preservação dos traços essenciais da identidade local, ainda que sacrificando a integração cultural e a coesão social.

Na comunidade rural angolana vigoram representações sociais sobre a mulher que exprimem uma discriminação sexual que a desqualifica socialmente e que decorre dos seguintes factos: a sua autonomia e importância social são limitadas; a sua sujeição aos ritos de passagem constitui uma forma de legitimar o seu papel social secundário, condicionado pelas lógicas de dominação masculinas; a diferenciação de papéis sexuais reserva-lhe destaque apenas no contexto doméstico, como dona de casa [Altuna 1993: 259].

A mulher é, acima de tudo, garantia de reprodução da linhagem, pelo que será estimada pelo marido consoante o número de filhos que gerar. Assim, as representações sociais sobre a mulher rural têm-na como submissa, ao serviço do homem e talhada para funções de mãe e doméstica, daqui resultando o seu estatuto e credibilidade, razão pela qual o seu lugar é em casa, não precisando, portanto, da escolaridade. O seu valor social está associado ao casamento, à fecundidade e ao vínculo à família e ao marido. Um provérbio do Ghana diz que “uma mulher é uma flor num jardim e o seu marido é a cerca em torno dela”, o que traduz bem as restrições à participação na vida social que lhe são impostas.

No contexto rural assiste-se à subalternização da mulher e à redução do seu espaço de afirmação. A condição de mulher adulta é conquistada mediante os ritos iniciáticos por meio dos quais ela se prepara para os papéis de esposa e mãe, de gestora do lar e da vida familiar. Altuna diz-nos que “a mulher é estimada sobretudo por ser fecunda” [1993: 308] e, “se não tiver filhos, não consegue a plenitude feminina” [1993: 310].

Deste modo, as meninas são educadas no preceito de que, enquanto mulheres, são “depositárias do passado e garantia da continuidade comunitária” [Altuna 1993: 256], enquanto mães são “manancial de força vital e a guarda da casa” [Altuna 1993: 257] e enquanto gestoras do lar são a “garantia de hospitalidade e sossego doméstico” [Altuna 1993: 259] e a educadora dos filhos.

2.7- Desigualdade de género no meio rural: explicação sociológica

A educação tradicional no meio rural angolano rege-se por lógicas discriminatórias que redundam em prejuízo da mulher. Pode-se compreender a dimensão conservadora da cultura no meio rural angolano na base da qual assenta a discriminação de género convocando os conceitos de “habitus” [Bourdieu 1983], de “hegemonia cultural” [Gramsci 1996] e de “prisão psíquica” [Morgan 1996].

O comportamento social no interior de uma comunidade é regulado pelos elementos da cultura em relação aos quais os sujeitos constroem o seu sentido de identidade. Cada comunidade desenvolve formas específicas de cultura no interior das quais o comportamento social ganha significado e é legitimado. As culturas tendem a preservar-se, gerando-se no seu seio mecanismos de coerção pelo que a preservação cultural no meio rural angolano decorre desses mecanismos e do seu fechamento em relação à cultura urbana, considerada nociva.

O relativo isolamento das comunidades rurais em Angola e a resistência à cultura do colonizador conduziram a que essas comunidades se fechassem sobre si próprias e desenvolvessem mecanismos de endoculturação para preservação da sua identidade cultural. A vida comunitária rege-se por padrões próprios, confinando os sujeitos a práticas significantes mediante as quais geram o sentido de pertença e atribuem significado à sua praxis. A pressão social, a coerção e os rituais comunitários reforçam esta identidade, obrigando os indivíduos ao cumprimento dos padrões comportamentais vigentes visando a manutenção de modos de conduta uniformes e perenes, constituindo-se, por via desta socialização, o que Bourdieu [1983] designou por “habitus”.

A compreensão da força da tradição cultural no meio rural em Angola, num contexto de diversidade cultural e de promoção da identidade cultural decorre da consideração do lugar e do papel da cultura local enquanto elemento configurador da identidade dos grupos étnicos que constituem o mosaico cultural angolano. A elucidação desse papel pode ser feita na base da noção de “cultura hegemónica” de Gramsci [1996], segundo a qual os valores culturais tradicionais se impõem sem discussão, na convicção de que preservam a identidade e evitam a descaracterização cultural.

A estrutura social no meio rural está concebida para induzir nos indivíduos atitudes e sentimentos congruentes com os padrões culturais, accionando práticas socializadoras como os ritos de iniciação. Estes visam “fixar os neófitos na tradição, mentalizá-los para a guardar e defender contra qualquer investida inovadora” [Altuna 1993: 295]. A socialização comunitária cumpre assim a função de integração nos padrões de vida, gerando uma conformidade do comportamento com a tradição cultural, o que contribui para a preservação da identidade cultural.

A socialização das crianças neste meio processa-se segundo regras e códigos estritos, esperando-se que elas respeitem as tradições e actuem como agentes da sua preservação. Assim se estabelece o habitus [Bourdieu 1983: 65] enquanto conjunto de disposições, gostos e preferências dos indivíduos, produtos de um processo de socialização nas mesmas condições contextuais, permitindo estabelecer a coerência entre acção individual e colectiva, ou seja, uma certa homogeneidade e continuidade na acção social de um grupo, em função das quais os membros se reconhecem.

As representações simbólicas sobre os papéis sexuais, construídas no âmbito da socialização e enquanto expressão social do género, exercem enorme impacto e regulam os comportamentos sociais. Por causa da socialização, os actores tendem a gerar mitos racionalizadores para justificar os factos da vida e os comportamentos, passando a agir de acordo com regras estritas como se obedecessem a um guião.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A conjugação de factores socioeconómicos desfavoráveis e a predominância dos valores tradicionais da educação comunitária forçam as raparigas do meio rural, na sequência do cumprimento dos ritos de iniciação, a abandonar precocemente a escola para se prepararem para o casamento e a maternidade. Assim sendo, a mulher rural, cuja função social se restringe ao contexto doméstico, tem reduzidas oportunidades de participação e intervenção social, deixando-se aos homens a prerrogativa de decidir os destinos da comunidade.

A prevalência da tradição no meio rural difundida por práticas socializadoras que diferenciam os papéis sociais em função do género contribui para diminuir o estatuto social da mulher cuja dignidade depende da sua condição de “casada” e da sua relação ao esposo e ao lar. A força da tradição no meio rural em relação à qual a mulher se encontra aprisionada, reforçada pelas crenças místico-religiosas sobre as consequências nefastas do seu incumprimento faz com que a sua identidade de género se construa por referência a uma situação de submissão às lógicas de dominação masculina.

A submissão da mulher rural, culturalmente promovida e naturalizada por via da tradição, deve ser entendida como mecanismo inerente à hegemonia cultural à qual a comunidade se verga. Por isso, a mulher no meio rural goza de uma “cidadania mitigada”, sendo-lhe limitadas as oportunidades de participação na esfera pública comunitária. Isto representa uma violação dos seus direitos de cidadania, pelo que a emancipação da mulher passa pela erradicação dos preconceitos sociais, do “sexismo” cultural e pela educação comunitária cuja preocupação consista em desenvolver uma consciência social a respeito dos valores democráticos e humanistas e, ao mesmo tempo, um combate às práticas culturais não congruentes com a dignidade humana.

Em contexto rural, as desigualdades sociais acentuam-se em função do género, por acção de factores culturais enraizados, reforçados por um défice de intervenção educativa. A manutenção dos ritos de passagem, embora constitua um factor de preservação cultural, representa também um factor de agravamento da desigualdade no acesso das raparigas à escola e na participação das mulheres na vida social acabando por reforçar a sua condição de subalternidade.

 

4- BIBLIOGRAFIA

 

·        ALTUNA, Raul de Asúa, 1993: Cultura Tradicional Banto, Luanda: Secretariado Arquidiocesano de Pastoral

·        BA, Amadou Hampâté, 1972: Aspects de la Civilisation Africaine, Paris: Présence Africaine

·        BHABHA, Hommi K., 1998: O Lugar da Cultura, Belo Horizonte: Editora UFMG

·        BOURDIER, Pierre, 1983: Sociologia, São Paulo: Ática

·        BOURDIER, Pierre, 1989: O Poder Simbólico, Lisboa: Difel

·        BOURDIER, Pierre, 1999: A Dominação Masculina, Oeiras: Celta

·        GOVERNO de Angola & PNUD, 2005: Angola. Objectivos do Desenvolvimento do Milénio 2005, Luanda: Governo de Angola e PNUD

·        GRAMSCI, António, 1996: Cahiers de Prison, Paris: Gallimard

·        GREENBERG, Márcia; Della McMILAN, Branca ESPÍRITO SANTO; & Júlia ORNELAS, 1997: A participação da mulher na reconstrução de Angola no seu processo político e instituições. Luanda

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·        MELO, Rosa M., s.d.: Alimentação, Doenças e Terapias entre os Handa [Angola], www.codesria.org/IMG/pdf/melo_conceicao.pdf <23 de Setembro de 2010>

·        MELO, Rosa M., 2005: De Menina a Mulher. Iniciação Feminina entre os Handa no Sul de Angola, Lisboa: Ela por Ela

·        MELO, Rosa M., 2008: “A morte, os defuntos e os rituais de “limpeza” no pós-guerra angolano: quais os caminhos para pôr termo ao luto?”, Afro-Ásia, nº 37, pp. 175-200.

·        MORGAN, Gareth, 1996: Imagens da Organização, São Paulo: Atlas

·        ZAU, Filipe, 2002: Angola. Trilhos para o Desenvolvimento, Lisboa: Universidade Aberta.

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