INSTITUTO SUPERIOR TÉCNICO DE ANGOLA
ISTA
CURSO DE PSICOLOGIA
RELAÇÕES CULTURAS ANGOLANAS
CAXITO
- BENGO
-2022
INSTITUTO SUPERIOR
TÉCNICO DE ANGOLA
RELAÇÕES CULTURAS ANGOLANAS
Trabalho científico apresentado ao
professor Jacob Mário, como requisito necessário para a avaliação na
cadeira de Antropologia Cultural.
GRUPO N° 03
2º
ANO
SALA:
04
PERÍODO:
TARDE
CAXITO
- BENGO
-2022
1.
Fernando Inácio
2.
Felisberta
Manuel
3.
Maria André
4.
Evalina
Cutandala
5.
Madalena
Carvalho
6.
Gomes Gomes
7.
Inácio Gama
8.
João Lourenço
9.
Elsa Ferreira
10. Garcia Chaves
11. Marcelina da Silva
RESUMO
A
riqueza cultural de Angola manifesta-se em diferentes áreas. No artesanato,
destaca-se a variedade de materiais utilizados. Através de estatuetas em
madeira, instrumentos musicais, máscaras para danças rituais, objectos de uso
comum, ricamente ornamentados, pinturas a óleo e areia, é comprovada a
qualidade artística angolana, patente em museus, galerias de arte e feiras.
Associado às festas tradicionais promovidas por etnias locais está também um
grande valor cultural. A presença constante da dança no quotidiano é produto de
um contexto cultural apelativo para a interiorização de estruturas rítmicas
desde cedo. Iniciando-se pelo estreito contacto da criança com os movimentos da
mãe (às costas da qual é transportada), esta ligação é fortalecida através da
participação dos jovens nas diferentes celebrações sociais (os jovens são os
que mais se envolvem), onde a dança se revela determinante enquanto factor de
integração e preservação da identidade e do sentimento comunitário. Depois de
vários séculos de colonização portuguesa, Angola acabou por também sofrer
misturas com outras culturas e a música anuncia a riqueza artística de Angola,
com os ritmos do kizomba, semba, rebita, cabetula, kilapanga e os novos
estilos, como o zouk e kuduro, a animar as noites africanas. As danças
tradicionais assumem, paralelamente, a sua relevância, a par da gastronomia
rica e variada. A literatura angolana tem origem no século XIX, com uma função
marcadamente “intervencionista e panfletária de uma imprensa feita pelos
nativos da terra”, sendo que a mesma reflecte também a riqueza cultural do
país. É a cultura que molda a imagem de Angola no mundo. Uma política cultural
externa para a representação da diversidade cultural de Angola é, portanto, uma
grande preocupação do Governo angolano. Portanto, o presente trabalho tem como
objectivo descrever as relações existente entre culturas angolanas.
Palavras-chaves:
Culturas, identidade de género, tradição, rituais iniciáticos, hegemonia
cultural.
ÍNDICE
2.1-
Relações Entre Culturas da Angola
2.2-
Características socioculturais do meio rural
2.3-
Cultura tradicional bantu
2.4-
O lugar da mulher na cultura bantu
2.5-
Tradição e preservação cultural identitária
2.6-
Tradição e construção social do género em Angola
2.7-
Desigualdade de género no meio rural: explicação sociológica
INTRODUÇÃO
Nas
comunidades rurais, a mulher constitui o pilar da vida familiar e doméstica,
cabendo-lhe pesadas responsabilidades nos domínios da educação dos filhos, dos
proventos do agregado familiar e da gestão da vida doméstica. Apesar disso, a
sua existência pauta-se por uma grande invisibilidade no plano social na medida
em que não é chamada a intervir nos processos decisivos da vida comunitária.
No
meio rural angolano regista-se forte predominância da tradição cultural, razão
pela qual hábitos e costumes locais têm sido preservados, entre os quais os
ritos de iniciação que contribuem não apenas para a diferenciação de papéis
sexuais mas também para a inferiorização social das mulheres. Tais preceitos
são reforçados por lógicas de dominação masculina que tendem a naturalizar a
submissão das mulheres.
A
educação tradicional comunitária não tem sido abordada na perspectiva da
construção da identidade nacional e da cidadania democrática atribuindo-se-lhe,
geralmente, uma função de enraizamento cultural. Esta educação radica na Educação
Tradicional Africana, cujo princípio basilar é a diferenciação de género. Sendo
criticável à luz do princípio da igualdade de direitos, não se pode ignorar o
potencial educativo quanto ao resgate da identidade dos angolanos enquanto
bantu.
Nesta
base, no quadro da evolução democrática da sociedade angolana e das políticas
educativas e culturais considerando a diversidade cultural do país. Trata-se de
saber como se pode influenciar os valores da educação tradicional no meio rural
fundados em perspectivas culturais nem sempre compagináveis com a dignidade
humana. Assim, é de se questionar como se pode, no contexto dos direitos de
cidadania, garantir a igualdade de género no meio rural angolano tendo em conta
o princípio da igualdade de direitos e a obrigação ética de dignificação da
mulher.
2-FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1- Relações Entre Culturas da Angola
A
cultura angolana é por um lado tributária das etnias que se constituíram no
país há séculos - principalmente os ovimbundos, ambundos, congos, chócues e
ovambos.
A
Angola apresenta uma grande riqueza cultural derivada das diversas etnias que
compõem a sua população. Cada uma delas possui um conjunto de costumes e
tradições próprio que contribui para a formação do quadro nacional. O país
reúne a segunda maior população falante de português do mundo, atrás apenas do
Brasil, mas diversas outras línguas são faladas no território angolano, como
kimbundu, umbundu, fiote, nhanheca, kikongu, tchokwe e kwanyama.
Além
das celebrações tradicionais de cada uma das etnias do país, existem algumas
festas realizadas anualmente que envolvem toda a nação e atraem pessoas de
todos os lugares, como o Carnaval, destacando-se o realizado em Luanda, e a
Festa da Nossa Senhora da Muxima em Kissama, onde se localiza o seu santuário.
O
artesanato é um elemento típico da cultura angolana, assim como os mais
diversos estilos musicais e de dança, antigos e recentes, que expressam a
pluralidade cultural do país, sendo alguns deles: semba, rebita, cabetula,
kuduro, zouk e kizomba.
A
culinária angolana utiliza ingredientes tropicais e típicos da região,
recebendo ainda um pouco da influência portuguesa. O funge é um dos pratos
tradicionais da Angola, comparado muitas vezes a um pirão, e é feito à base de
mandioca ou milho, variando regionalmente. Dentre seus acompanhamentos está o
calulu, à base de carne vermelha ou peixe, e outros ingredientes.
2.2- Características socioculturais do meio rural
O
meio rural em Angola pode ser caracterizado por indicadores que denotam um modo
de vida precário, revelado por: estilo de vida simples, à margem das
tecnologias e do mundo letrado; recurso a ferramentas tradicionais e obsoletas;
actividade produtiva ligada à agricultura de subsistência e pastorícia;
povoações dispersas, isoladas, com limitadas condições básicas de vida sendo
que apenas 22,8% da população tem acesso a água potável e 31,1% a saneamento
básico [INE 2009]; escassez de equipamentos sociais; taxas de analfabetismo na
ordem de 46% para os homens e 66% para as mulheres [UNICEF 2011: 96]; prática
de ritos de passagem à idade adulta; vida comunitária regida pelas lógicas da
gerontocracia; isolamento e algum fechamento à influência cultural externa
[Altuna 1974: 215].
Este
é um quadro desfavorável que não só torna difícil a vida a estas pessoas como
também as remete para condições pouco dignas de existência. Em contrapartida,
elas agarram-se àquilo que lhes é mais valioso e significativo: a tradição
cultural mediante a qual resgatam o sentido de identidade e dignidade,
reportados aos valores e interesses da comunidade na qual encontram compreensão
e solidariedade. Sobre esta questão, Melo [s.d.: 2] refere mesmo que “a
manutenção dos seus usos e costumes bem como das suas crenças tradicionais é
para muitos a base da sua sobrevivência”.
Neste
meio, a função social da mulher liga-se ao casamento, à maternidade, ao lar e à
educação dos filhos pelo que a sua dignidade depende do modo como ela honra a
família. Valoriza-se a sua função de educadora expressa no provérbio que afirma
que “para educar um homem, eduque-se a criança, para educar uma aldeia,
eduque-se a mulher”. Apesar disso, a sua visibilidade social é reduzida e a sua
intervenção na vida comunitária não extravasa o contexto doméstico, pelo que
Altuna [1993: 165 e 256] considera que “a mulher é a agricultora-mãe-esposa-dona
de casa-doadora de sangue-linhagem”. A socialização desta opera-se no âmbito
das lógicas sexistas e de dominação masculina [Bourdieu, 1999], subjugada pela
tradição e reforçada por ritos iniciáticos. Desde cedo, o destino da mulher fica
traçado e ela não tem como lhe escapar.
2.3- Cultura tradicional bantu
A
cultura bantu representa a marca específica das populações da África Negra e
tem grande influência na vida comunitária em Angola, em particular no meio
rural, ainda relativamente preservado da influência cultural decorrente da
colonização, da modernização e da globalização. No geral, essa cultura
caracteriza-se por: regime de patriarcado e gerontocracia, que pressupõe a
prevalência do poder dos anciãos, sendo estes considerados fonte normativa da
comunidade; papel secundário da mulher, tendo influência apenas no contexto
doméstico, como esposa, mãe e educadora [Altuna 1993: 259]; os jovens de ambos
os sexos são sujeitos a rituais de passagem à vida adulta, adquirindo o
estatuto de membros de pleno direito; casamento precoce das raparigas uma vez
que a sua realização como pessoas depende disso, sendo que “a auréola de
dignidade e prestígio brota da sua fecundidade” [Altuna 1993: 260].
Tal facto impede a conclusão da escolaridade
obrigatória, não valorizada socialmente porque, para ser doméstica, essa
escolaridade não faz falta; endoculturação forte mediante mecanismos de
coerção, visando preservar as tradições culturais, os papéis sexuais e a
estabilidade da comunidade; subordinação da mulher, que deve honrar a família,
aceitando o casamento, dignificando o nome do esposo e preocupando-se com a
gestão do lar; prevalência da poligamia em muitas comunidades, o que dilui
ainda mais o valor social da mulher.
As
representações sobre a mulher estão predominantemente associadas à maternidade
e aos papéis de mãe e esposa. Reforça-se o seu estatuto inferior, por força da
socialização em contexto comunitário, onde a iniciação feminina funciona no
sentido de “instruir e preparar as raparigas para todas as funções femininas”
[Altuna 1993: 296], pois “para isso é educada e lho exige a vida comunitária”
[Altuna 1993: 348].
2.4- O lugar da mulher na cultura bantu
Na
sociedade tradicional bantu, a mulher tem sido encarada como elemento
complementar ao homem. A este cabem as actividades que exigem força, destreza e
resistência e longos períodos fora de casa sendo a mulher remetida para “um
campo mais restrito de actividades por causa das frequentes gestações e do
cuidado dos filhos” [Altuna 1993: 164-165].
Estabelece-se
assim uma divisão do trabalho por sexos reforçada pela ideia de que a mulher,
sendo impura por causa da menstruação, não pode executar qualquer actividade, o
que alimentou tabus relacionados com limitações à sua participação em certos
trabalhos “para não manchá-los com a sua impureza. Além disso, as
responsabilidades e tarefas inerentes ao cuidado do lar, do marido e dos filhos
retiram-lhe tempo para se ocupar dos assuntos considerados “próprios dos
homens”. Um estudo de Greenberg et al. [1997: 37] refere que “para a maioria
das mulheres, o seu dia inicia com uma ou duas horas buscando água, seguido de
duas ou três horas pisando os cereais. A mulher rural típica gasta todo o dia
de trabalho cuidando o campo que ela cultiva com as suas crianças e o seu
marido caso tenha um”. Esta faceta da vida da mulher rural ligada à execução de
actividades produtivas tem importância económica para a subsistência familiar e
até da comunidade [Henderson 1972].
A
socialização comunitária é realizada sob consideração da diferenciação de
papéis, atribuindo-se a rapazes e raparigas tarefas distintas. Assim, as
tarefas desempenhadas pelas raparigas relacionam-se com actividades domésticas
femininas. Elas distraem-se com jogos e brincadeiras relacionados com os “ofícios
femininos” e restringem-se a ambientes que têm como referência o lar e os
futuros papéis de esposa e mãe. Elas estão em estreita interacção com as mães
pois é imperioso que assimilem os comportamentos próprios de quem está
destinada a ser esposa e mãe. Circunscritas a este ambiente sob o olhar atento
das mulheres, as meninas estão permanentemente sujeitas às influências da
tradição, de pendor discriminatório, sendo preparadas para o ofício de esposa e
mãe. Este é o destino que lhes é irrevogavelmente traçado.
Os
ritos femininos realizam-se após o aparecimento da primeira menstruação e são
assegurados pelas mulheres mais experientes da aldeia que transmitem às
neófitas os mistérios da sexualidade, do nascimento e da fertilidade pois estes
ritos visam sobretudo a preparação para o casamento. “A rapariga fica apta para
o casamento, para a sua missão fundamental: ser mãe. Os ritos de puberdade
definem oficial e publicamente a sua capacidade, valor e estima como
procriadora-vivificadora”, como afirma Altuna [1993: 298].
O
valor simbólico destes rituais reside do facto de incutir na mente das
raparigas o seu valor e estima como procriadoras, considerando que a mulher “é
antes de mais um ‘campo vaginal’ destinado a ser fecundado pelo homem” [Altuna
1993: 299]. A iniciação da mulher representa a assunção da sua aptidão para o
casamento, que ocorre quase de seguida e mediante o qual alcança a condição de
mulher adulta e plena.
Assim,
o casamento justifica-se e consolida-se pela fecundidade da mulher que, em
geral, tem muitos filhos, o que faz aumentar o seu prestígio social. Não
compete, portanto, à mulher, decidir sobre esta matéria, pois segundo Moura
[s.d.], “as mulheres que desafiam conscientemente ou por imprudência as
proibições ou os tabus expõem-se à reprovação da família e a críticas por vezes
violentas da comunidade”. Apesar disso, a sua importância restringe-se ao
contexto familiar, levando uma vida doméstica penosa e nem sempre reconhecida.
Embora possuindo uma “auréola de dignidade”, a presença da mulher é “invisível”
no plano comunitário e social, reservado aos homens.
2.5- Tradição e preservação cultural identitária
No
meio rural, a educação escolar pouca influência tem exercido na vida da
comunidade, restringindo a sua acção à transmissão de um currículo ao qual nem
sempre se reconhece utilidade. Ou seja, a construção da cidadania no meio rural
pouco tem beneficiado da escolarização e da educação estatal, cuja missão tem a
ver com a inculcação dos valores da igualdade e da dignidade, sendo interferida
pelos cânones da tradição baseados na diferenciação sexual, na desigualdade
entre os géneros e, como consequência, na inferiorização da mulher.
Para
entender esta relação contraditória é preciso regressar ao passado. Em Angola,
o conhecimento era tradicionalmente transmitido às novas gerações através dos
ritos de iniciação e de outras formas de educação tradicional asseguradas pelos
“mais-velhos”. Esta transmissão foi alterada pela colonização que, com as
políticas de assimilação, tratou de impor o modo de vida europeu aos africanos.
Na
actualidade, a educação escolar tem sido encarada como estranha à cultura da
comunidade onde a escola está implantada. Exemplo disso é a utilização da
língua portuguesa no ensino de crianças cuja língua materna é de origem bantu,
o que cria dificuldades de aprendizagem [Zau 2002]. Por esta razão, a escola
oficial enfrenta algumas resistências no meio rural, traduzidas essencialmente
no absentismo escolar, mais acentuado entre as meninas.
A
colonização conduziu à descaracterização da cultura tradicional, razão pela
qual muitas práticas tradicionais foram quase erradicadas. Após a
independência, em virtude da ideologia marxista, as práticas tradicionais foram
desvalorizadas por terem sido tomadas como obscurantistas ou contrárias aos
interesses nacionais. Actualmente, reconhecendo a importância do património
cultural representado pela sabedoria popular, o governo angolano vem adoptando
políticas culturais para resgatar o capital cultural acumulado nas aldeias para
que não ocorra a perda do património tradicional pois é sabido que, “nas
sociedades tradicionais, quando morre um ancião perde-se uma biblioteca” [Ba
1972].
As
estratégias educativas incluem o recurso à literatura oral, (contos, lendas,
mitos, récitas, fábulas, provérbios, adivinhas), às cenas da vida quotidiana,
às canções, às danças, aos ritos de iniciação, à simbologia (metáforas,
amuletos, talismãs, invocações, bênçãos) e às artes, onde os neófitos aprendem
com os adultos e os mestres. Desta forma, as tradições são inculcadas nos
jovens, a quem recai a obrigação de as preservar.
2.6- Tradição e construção social do género em
Angola
A
urbanização das sociedades africanas tem contribuído para a construção de uma
nova visão da mulher associada à sua capacidade de participar socialmente e de
gerar rendimentos. Contudo, no meio rural, fruto da influência cultural
ancestral, não se observa uma verdadeira igualdade democrática entre géneros,
encarando-se a mulher como “elemento supletivo”, cabendo-lhe um papel
secundário na comunidade onde “não desfruta de um status social igual ao do
homem” [Altuna 1993: 257].
As
mulheres africanas rurais não conseguem emancipar-se socialmente devido às
imposições tradicionais e às representações sociais vigentes atribuindo-se-lhes
“trabalhos que exigem delicadeza, cooperação, fecundidade e cuidado da vida”
[Altuna 1993: 167].
A
cultura tradicional africana foi sendo alterada por introdução de elementos
decorrentes da colonização e, agora, da globalização cultural. Essas alterações
repercutiram-se nos vários domínios da vida social, mas a persistência dos
rituais de iniciação ajudou a reafirmar os valores culturais tradicionais, o
que contribuiu para a preservação dos traços essenciais da identidade local,
ainda que sacrificando a integração cultural e a coesão social.
Na
comunidade rural angolana vigoram representações sociais sobre a mulher que
exprimem uma discriminação sexual que a desqualifica socialmente e que decorre
dos seguintes factos: a sua autonomia e importância social são limitadas; a sua
sujeição aos ritos de passagem constitui uma forma de legitimar o seu papel
social secundário, condicionado pelas lógicas de dominação masculinas; a
diferenciação de papéis sexuais reserva-lhe destaque apenas no contexto
doméstico, como dona de casa [Altuna 1993: 259].
A
mulher é, acima de tudo, garantia de reprodução da linhagem, pelo que será
estimada pelo marido consoante o número de filhos que gerar. Assim, as
representações sociais sobre a mulher rural têm-na como submissa, ao serviço do
homem e talhada para funções de mãe e doméstica, daqui resultando o seu
estatuto e credibilidade, razão pela qual o seu lugar é em casa, não
precisando, portanto, da escolaridade. O seu valor social está associado ao
casamento, à fecundidade e ao vínculo à família e ao marido. Um provérbio do
Ghana diz que “uma mulher é uma flor num jardim e o seu marido é a cerca em
torno dela”, o que traduz bem as restrições à participação na vida social que
lhe são impostas.
No
contexto rural assiste-se à subalternização da mulher e à redução do seu espaço
de afirmação. A condição de mulher adulta é conquistada mediante os ritos
iniciáticos por meio dos quais ela se prepara para os papéis de esposa e mãe,
de gestora do lar e da vida familiar. Altuna diz-nos que “a mulher é estimada
sobretudo por ser fecunda” [1993: 308] e, “se não tiver filhos, não consegue a
plenitude feminina” [1993: 310].
Deste
modo, as meninas são educadas no preceito de que, enquanto mulheres, são
“depositárias do passado e garantia da continuidade comunitária” [Altuna 1993:
256], enquanto mães são “manancial de força vital e a guarda da casa” [Altuna
1993: 257] e enquanto gestoras do lar são a “garantia de hospitalidade e
sossego doméstico” [Altuna 1993: 259] e a educadora dos filhos.
2.7- Desigualdade de género no meio rural:
explicação sociológica
A
educação tradicional no meio rural angolano rege-se por lógicas discriminatórias
que redundam em prejuízo da mulher. Pode-se compreender a dimensão conservadora
da cultura no meio rural angolano na base da qual assenta a discriminação de
género convocando os conceitos de “habitus” [Bourdieu 1983], de “hegemonia
cultural” [Gramsci 1996] e de “prisão psíquica” [Morgan 1996].
O
comportamento social no interior de uma comunidade é regulado pelos elementos
da cultura em relação aos quais os sujeitos constroem o seu sentido de
identidade. Cada comunidade desenvolve formas específicas de cultura no
interior das quais o comportamento social ganha significado e é legitimado. As
culturas tendem a preservar-se, gerando-se no seu seio mecanismos de coerção
pelo que a preservação cultural no meio rural angolano decorre desses
mecanismos e do seu fechamento em relação à cultura urbana, considerada nociva.
O
relativo isolamento das comunidades rurais em Angola e a resistência à cultura
do colonizador conduziram a que essas comunidades se fechassem sobre si
próprias e desenvolvessem mecanismos de endoculturação para preservação da sua
identidade cultural. A vida comunitária rege-se por padrões próprios,
confinando os sujeitos a práticas significantes mediante as quais geram o
sentido de pertença e atribuem significado à sua praxis. A pressão social, a
coerção e os rituais comunitários reforçam esta identidade, obrigando os
indivíduos ao cumprimento dos padrões comportamentais vigentes visando a
manutenção de modos de conduta uniformes e perenes, constituindo-se, por via
desta socialização, o que Bourdieu [1983] designou por “habitus”.
A
compreensão da força da tradição cultural no meio rural em Angola, num contexto
de diversidade cultural e de promoção da identidade cultural decorre da
consideração do lugar e do papel da cultura local enquanto elemento
configurador da identidade dos grupos étnicos que constituem o mosaico cultural
angolano. A elucidação desse papel pode ser feita na base da noção de “cultura
hegemónica” de Gramsci [1996], segundo a qual os valores culturais tradicionais
se impõem sem discussão, na convicção de que preservam a identidade e evitam a
descaracterização cultural.
A
estrutura social no meio rural está concebida para induzir nos indivíduos
atitudes e sentimentos congruentes com os padrões culturais, accionando
práticas socializadoras como os ritos de iniciação. Estes visam “fixar os
neófitos na tradição, mentalizá-los para a guardar e defender contra qualquer
investida inovadora” [Altuna 1993: 295]. A socialização comunitária cumpre
assim a função de integração nos padrões de vida, gerando uma conformidade do
comportamento com a tradição cultural, o que contribui para a preservação da
identidade cultural.
A
socialização das crianças neste meio processa-se segundo regras e códigos
estritos, esperando-se que elas respeitem as tradições e actuem como agentes da
sua preservação. Assim se estabelece o habitus [Bourdieu 1983: 65] enquanto
conjunto de disposições, gostos e preferências dos indivíduos, produtos de um
processo de socialização nas mesmas condições contextuais, permitindo
estabelecer a coerência entre acção individual e colectiva, ou seja, uma certa
homogeneidade e continuidade na acção social de um grupo, em função das quais
os membros se reconhecem.
As
representações simbólicas sobre os papéis sexuais, construídas no âmbito da
socialização e enquanto expressão social do género, exercem enorme impacto e
regulam os comportamentos sociais. Por causa da socialização, os actores tendem
a gerar mitos racionalizadores para justificar os factos da vida e os
comportamentos, passando a agir de acordo com regras estritas como se
obedecessem a um guião.
3- CONSIDERAÇÕES FINAIS
A
conjugação de factores socioeconómicos desfavoráveis e a predominância dos
valores tradicionais da educação comunitária forçam as raparigas do meio rural,
na sequência do cumprimento dos ritos de iniciação, a abandonar precocemente a
escola para se prepararem para o casamento e a maternidade. Assim sendo, a
mulher rural, cuja função social se restringe ao contexto doméstico, tem
reduzidas oportunidades de participação e intervenção social, deixando-se aos
homens a prerrogativa de decidir os destinos da comunidade.
A
prevalência da tradição no meio rural difundida por práticas socializadoras que
diferenciam os papéis sociais em função do género contribui para diminuir o
estatuto social da mulher cuja dignidade depende da sua condição de “casada” e
da sua relação ao esposo e ao lar. A força da tradição no meio rural em relação
à qual a mulher se encontra aprisionada, reforçada pelas crenças
místico-religiosas sobre as consequências nefastas do seu incumprimento faz com
que a sua identidade de género se construa por referência a uma situação de
submissão às lógicas de dominação masculina.
A
submissão da mulher rural, culturalmente promovida e naturalizada por via da
tradição, deve ser entendida como mecanismo inerente à hegemonia cultural à
qual a comunidade se verga. Por isso, a mulher no meio rural goza de uma
“cidadania mitigada”, sendo-lhe limitadas as oportunidades de participação na
esfera pública comunitária. Isto representa uma violação dos seus direitos de
cidadania, pelo que a emancipação da mulher passa pela erradicação dos
preconceitos sociais, do “sexismo” cultural e pela educação comunitária cuja
preocupação consista em desenvolver uma consciência social a respeito dos
valores democráticos e humanistas e, ao mesmo tempo, um combate às práticas culturais
não congruentes com a dignidade humana.
Em
contexto rural, as desigualdades sociais acentuam-se em função do género, por
acção de factores culturais enraizados, reforçados por um défice de intervenção
educativa. A manutenção dos ritos de passagem, embora constitua um factor de
preservação cultural, representa também um factor de agravamento da
desigualdade no acesso das raparigas à escola e na participação das mulheres na
vida social acabando por reforçar a sua condição de subalternidade.
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